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NO VAGAR DA PENUMBRA

NO VAGAR DA PENUMBRA

ANA PAULA MARTINS - WORST OF (ANOTADO)

Setembro 08, 2024

J.J. Faria Santos

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“Nós temos lideranças fracas. Nós precisamos de lideranças à frente dos hospitais e à frente dos serviços que sejam mobilizadoras, que atraiam os jovens profissionais, que os tratem bem. (…) Não basta que os administradores venham dizer que não têm condições."

(12/06/2024)

Tradução: Se os administradores não estiverem alinhados com o “espírito reformista” do Governo, este terá de os “libertar” dessa missão.

 

“Vou dizer isto correndo o risco de ser um ‘headline’ amanhã nos jornais: eu sou a rainha de Inglaterra. Eu não posso nem nomear, nem exonerar. Também não estou interessada em exonerar, mas em nomear estava.” (5/06/2024)

Tradução: Eu não quero exonerar ninguém (outra coisa é proporcionar o clima certo para que se demitam). Eu quero é nomear, nomear perdidamente. Nomear só por nomear: aqui…além…

 

“Aquilo que eu disse, assumo, foi algo bastante direto. Eventualmente podia não ter dito, talvez, mas aquilo que fiz e aquilo que disse foi exatamente no sentido oposto do que foi interpretado. Naturalmente, terei de ser suficientemente humilde para perceber que não foi assim interpretado, mas foi exatamente o objetivo de, enquanto responsável da saúde, dizer que temos mesmo de ter atenção a quem escolhemos para liderar as nossas equipas.”

(18/06/2024)

Tradução: Disse, mas podia não ter dito. A culpa foi do lobo frontal. Até o primeiro-ministro tem de “ter atenção” a quem escolhe para ministro(a).

 

“O que ainda não foi feito é porque ainda está a ser feito como deve ser”

(4/09/2024)

Tradução: Depressa e bem, há pouco quem. Devagar se vai ao longe. E rebéubéu, pardais ao ninho.

 

“Governamos dentro da legalidade e algumas medidas têm procedimentos e constrangimentos legais que - apesar de demorarem tempo - não vamos e não podemos prescindir.”

(4/09/2024)

Tradução: Se não fossem os “constrangimentos legais”, não existiriam os “constrangimentos nas urgências” (ex-caos).

 

Imagem: portugal.gov.pt

UM PASSEIO DE LANCHA EMBALADO PELA BRISA DA TRAGÉDIA

Setembro 01, 2024

J.J. Faria Santos

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O Presidente dos afectos colocou a fasquia alta para os restantes políticos. A cena da tragédia passou a exigir a sua presença – o pathos como circunstância política. Claro que a sua colorida personalidade, bem como a sua sinuosa prática, me levam sempre a pensar que ele é igualmente afectuoso a consolar um “popular” (como dizem invariavelmente os jornalistas) devastado pela perda de um familiar e a atirar para debaixo do comboio um membro de um governo caído na desgraça da impopularidade.

 

Já o primeiro-ministro é uma espécie de mito em construção. A ex-heterónima de Belém do jornal Expresso escreveu esta semana que “o rural vai durar”, porque conseguiu “anular ressentimentos de grupos sociais decisivos” e, mais importante, “foca-se no rumo que traçou e dá pouca confiança”. Se Montenegro “dá pouca confiança” a Marcelo, é compreensível, visto que não se deve permitir grande familiaridade a quem não é confiável. É preferível a fria cortesia do formalismo.

 

Desprovido de carisma, fiel à avareza da palavra, fixado na reconciliação com parcelas do eleitorado que o austero sentido de estado do passismo alienou, o primeiro-ministro procura construir a gravitas a partir de um compósito de propaganda, subsídios, gestão de silêncio e aparições cirúrgicas. É neste contexto que se situa a sua deslocação ao local da queda de um helicóptero no rio Douro.

 

Se a sua presença seria compreensível, dado o cargo que desempenha, já o mesmo não se pode dizer do passeio de lancha no rio, com o segurança/fotógrafo à ilharga, porque “quis estar pessoalmente com os mergulhadores que estavam a desempenhar uma missão muito perigosa e a colocar a vida em perigo”. É possível que, toldado pela emoção, o primeiro-ministro tenha revivido a sua vocação de nadador-salvador, mas isso não disfarça a inutilidade do gesto e a desconfortável suspeita de que assistimos a um evento mediático susceptível de originar um registo fotográfico lisonjeiro. Além do mais, parece-me evidente que para que a solidariedade com os operacionais no terreno fosse plena, Montenegro deveria ter mergulhado e não embarcado num minicruzeiro. No plano dos gestos simbólicos, um mergulho subaquático de Montenegro no rio Douro arrasaria o lúdico mergulho de Marcelo no Tejo.

 

Imagem: site do jornal Observador

A BELEZA, A BONDADE, A OROLOGIA E A UROLOGIA

Agosto 24, 2024

J.J. Faria Santos

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É certo que Margarida Blasco, ministra da Administração Interna, ganhou, quando liderava o SIS, o cognome de “Margarida Fiasco”, mas daí a concluir que acabou de confundir uma especialidade médica com a parte da geografia que estuda a formação das montanhas vai uma certa distância. Nem sequer, digamos, uma suposta eventual associação freudiana entre a elevação dos terrenos e o efeito hidráulico que ocorre no aparelho genital masculino autoriza tal conclusão. Na verdade, orografia e orologia são sinónimos e orologia e urologia são palavras homófonas.

 

A nomeação de Blasco gerou uma expectativa positiva. As suas passagens pelo SIS e pela IGAI foram marcadas por uma preocupação com a erradicação do racismo das forças de segurança e o combate às actividades criminosas no seio das autoridades policiais. No passado mês de Julho, declarou-se “perfeitamente intransigente” com os crimes de ódio e mostrou-se segura de que “a formação que está a ser dada vai retirar a fruta podre do grande cesto que são as forças de segurança”. Veremos se conseguirá evitar que a “podridão” alastre ou se será ela a cair de madura. No entretanto, podemos já concluir que, pelo menos quando se desvia do script ou resvala para a improvisação, aproxima-se do desastre comunicacional.

 

As declarações da ministra a propósito do incêndio na Madeira oscilaram entre o discurso de candidata a concurso de beleza e o argumentário de uma promotora turística. A sua piedosa proposição de “acabar com este fogo o mais depressa possível”, associada à caracterização de “uma ilha lindíssima” onde as “pessoas são muito boas” é o pináculo da vacuidade. Além de autorizar a conclusão, mais ou menos hilariante, de que, caso se tratasse de um arquipélago medonho com um índice de criminalidade elevado ou uma elevada taxa de sociopatas, seria aceitável que o fogo o consumisse.

 

Até ao momento, o que de mais relevante saiu da sua acção ministerial foi a valorização salarial dos polícias, em consonância com a estratégia de um “Governo viciado em passar cheques”, como o definiu Manuel Carvalho em artigo de opinião no Público de quinta-feira passada. Para Carvalho, a “sensação de energia e determinação” do Governo parece ter-se dissipado. De tal maneira que termina o artigo questionando, “querem governar para deixar uma marca de mudança e progresso para o país, ou continuarão limitados a passar cheques a tudo o que protesta ou mexe?”

 

Imagem: portugal.gov.pt

O PAI DA SENHORA MINISTRA

Agosto 18, 2024

J.J. Faria Santos

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O pai da senhora ministra é, nas imorredoiras palavras da compagne de route, entrevistadora extraordinaire e comentadora de alto coturno Maria João Avillez, um “fino analista político”, um “intelectual sólido”, um “homem civilizado” e um “comentador desassombrado”. O comentador é tão “desassombrado” que até já afirmou algo próximo da heresia, como a ideia de que “o cavaquismo foi importante, mas não mudou o destino do país”, e que “o soarismo foi importante e será o ‘ismo’ que a História perpetuará”.

 

O pai da senhora ministra admite que “tem muito passado” e “não tanto futuro quanto gostaria”. Diz-se um “homem livre e sem medo”, que “ama a liberdade acima de tudo”, politicamente estacionado na “fronteira da luta contra os populismos de direita ou de esquerda”. Outrora destacado responsável político na cúpula de um movimento armado de extrema-direita (até os “homens civilizados” precisam de uma pausa entre o bruto e o bestial), brilha agora como comentador num canal por cabo. Em Outubro de 2016, em entrevista à revista Sábado, fez questão de evocar as palavras do fundador do PSD: “Sá Carneiro dizia que eu era o melhor comentador, o Marcelo ficava um bocadinho ciumento”.

 

Recentemente, o pai da senhora ministra decidiu reclamar para si o papel de provedor da SIC Notícias, de guardião das boas práticas do jornalismo. Agastado com uma notícia da jornalista Vera Lúcia Arreigoso acerca do plano de emergência governamental para a Saúde, que alegadamente teria desrespeitado a regra básica de ouvir o ministério respectivo, o comentador jubilado, entre o arrogante e o paternalista, mimoseou Nelma Serpa Pinto com tiradas deste género: “Percebeu o que eu disse ou não quer perceber o que eu disse? Você não andou na escola de jornalismo?”

 

O tom com que o pai da senhora ministra disse “essa senhora chama-se Vera Arreigoso” soou a condenação à lista negra dos jornalistas que não são simpáticos para a causa (como a lendária Avillez). Como diria o ministro Rangel, não andará por aqui um perfume de “claustrofobia democrática”?

ABRENÚNCIO

Agosto 11, 2024

J.J. Faria Santos

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50% da bancada parlamentar do CDS-PP acha que a “única” forma de reverter a “liberalização da lei do aborto passa por um novo referendo”. E vê no recurso às taxas moderadoras uma forma de “limitar o acesso ao aborto”. E advoga a criação de “um fundo de emergência para famílias que pensam recorrer ao aborto por razões materiais”. (As razões imateriais não interessam, carecem de tangibilidade, diluem-se no abstracto). Em Fevereiro deste ano, no mesmo evento em que o deputado do Chega Pedro Frazão referiu que “a esquerda marxista e assassina tem ganhado essa batalha cultural”, Paulo Núncio já tinha defendido que “a esquerda tem dado passos para atacar a vida e a família”. 50% da bancada parlamentar do CDS-PP pensa isto, mas apenas a “título pessoal”.

 

Paulo Núncio é um cruzado, um soldado da resistência com ambições de reconquista de terreno do ideário cristão que ele vê sob ataque do secularismo e das ideologias malsãs, um defensor da vida e da família. Indignado com a cerimónia de abertura dos Jogos Olímpicos (cuja origem remonta a uma civilização em relação à qual ele registará os hábitos dissolutos e contranatura - sexo improdutivo, homoerotismo, pederastia -, e na qual se usavam métodos contraceptivos e o recurso ao aborto era legal, com utilização de vários métodos), e também com a polémica que envolveu a pugilista Imane Khelif, escreveu ele na rede social X: “Depois do ataque ao Cristianismo, agora a tentativa de normalização da violência sobre as mulheres! Inaceitável!”

 

50% da bancada parlamentar do CDS-PP está particularmente habilitada para discorrer sobre a violência sobre as mulheres, que põe em causa a sua integridade física, o seu bem-estar e o seu livre-arbítrio, porque, como se sabe, impedi-las de fazer escolhas acerca da sua saúde reprodutiva, expô-las a situações degradantes e reduzi-las ao estatuto de fêmea reprodutora não é um acto violento. Será defender a vida não desde a concepção, mas segundo a concepção de quem se encontra grávido de farisaísmo. Porque Núncio poderia apenas ser um homem de convicções fortes e ideias inabaláveis, mas isso não lhe chega. Daí a aura de ungido, as vestes do sectário, o rosto da superioridade moral e a intolerância que o coloca em contramão com a compaixão que a religião que ele professa tanto valoriza.

 

Imagem: X de Paulo Núncio

DIVAGAÇÕES ESTIVAIS SOBRE TUDO E SOBRE NADA

Agosto 04, 2024

J.J. Faria Santos

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Shannen Doherty morreu no dia 13 do mês passado aos 53 anos. A Time chamou-lhe “a rapariga quintessencial da geração X”. E escreveu que a personagem que ela interpretava na série Beverly Hills 90210, Brenda Walsh, era uma “mistura volátil de angústia da geração X, fragilidade juvenil e perseverança feminista”.

 

A série passou em Portugal entre 1992 e 1997, com a sua mistura de glamour endinheirado, drama geracional, beleza juvenil e apelo à rebeldia mitigada. Eu, que nunca me impressiono com a riqueza e o poder (ao contrário do que sucede com a beleza e a inteligência – e a conjugação destas duas mais do que impressionado, deixa-me subjugado), desdenhei da ostentação material e concentrei-me na riqueza emocional da Brenda e na rebeldia do Dylan McKay que o Luke Perry interpretava com ares de James Dean.

 

O problema era que, comparada com a série que tanto me impressionara em 1991/1992, Beverly Hills 90210 era um amuse-bouche desenxabido. Twin Peaks, a pièce de résistance, cuja acção se desenrolava numa pequena cidade, continha para além de drama, beleza juvenil e rebeldia, um suplemento de mistério e transgressão que mergulhava sem concessões no surrealismo.  Sherilyn Fenn (Audrey) e Lara Flynn Boyle (Donna) preenchiam com inegável talento a quota das sedutoras de serviço e James Marshall (James) arvorava aquele ar de desobediência e fragilidade do rebelde com todas as causas disposto a arcar com todas as consequências. No meio deste ambiente luxuriante, estimulante de sensações e sentimentos, quem é que quer saber da frivolidade dos automóveis descapotáveis, das  roupas de marca ou das festas da alta- roda?  

 

Não ignoro a importância dos bens materiais para a sobrevivência, para o conforto e para a satisfação daquelas necessidades que na minha família, há gerações, se designam por “extravagâncias”. E calha bem que uma “extravagância” tanto possa ser um capricho como algo fora de comum. Simplesmente, não tenho nem talento, nem vontade, nem perseverança para acumular riqueza. Há duas décadas, o meu desejo se ganhasse um bónus financeiro inesperado era gastar tudo numa visita a uma livraria. Agora, nem isso. O simples facto de ter 3 ou 4 livros em lista de espera causa-me uma mistura de ansiedade e gulodice.

 

É até possível que este meu desprendimento tenha alguma coisa a ver com aquilo que Douglas Coupland no seu livro Geração X denomina de “menorismo: filosofia que permite que uma pessoa se reconcilie com a diminuição de esperanças de riqueza material”, dando o exemplo de alguém que deixou de querer ser importante e só quer encontrar a felicidade. O que seguramente posso fazer é confessar a minha simpatia por um outro conceito expresso por Coupland no livro citado, concretamente o de “substituto de estatuto”, que consiste em “usar um objecto cotado intelectualmente ou na moda em substituição de um outro que é apenas caro”. O exemplo dado é este: “Brian, deixaste o teu Camus no BMW do teu irmão”.

 

A ficção de Twin Peaks começava com a descoberta do corpo de Laura Palmer. A vida real da Brenda de Beverly Hills 90210 terminou com a rendição involuntária à eufemística “doença prolongada”. Douglas Coupland escreveu que “ou as nossas vidas têm história, ou não há maneiras de as levarmos a cabo”, mas não é de descartar que as vidas modernas sejam um pouco como aquelas ficções com enredo inexistente ou difuso. Dito de outro modo: a vida moderna não é um romance, é um livro de contos. E a felicidade, claro, é uma intermitência.  

O MILAGRE DA MULTIPLICAÇÃO DOS EUROS

Julho 28, 2024

J.J. Faria Santos

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A grande marca dos primeiros 100 dias de um governo que promete ser reformista é a satisfação das reivindicações das corporações. Depois de ter bradado que as contas públicas estavam em “bastante pior” estado do que o anunciado, com despesa sem cabimentação orçamental, e de se ter queixado do impacto na receita da legislação aprovada pela oposição, só pode ter ocorrido o milagre da multiplicação dos euros. Doutra forma seríamos forçados a concluir da irresponsabilidade, da pulsão suicida ou de uma estratégia deliberada de ganhos políticos e eleitorais, chutando para o futuro as consequências da degradação financeira do país.

 

Se há área onde existiu continuidade em relação ao executivo anterior é o da estratégia de comunicação. Na edição de 11 de Julho, o jornal Público assinalava “285 páginas e 13 PowerPoints em 100 dias”, acrescentando que “das 285 páginas de anúncios, apenas seis propostas de lei chegaram ao Parlamento e há vários pacotes que não se comprometem com metas temporais, como o do combate à corrupção”. Não vai assim tão longe o tempo em que Luís Montenegro acusava o então primeiro-ministro, António Costa, de só apresentar “PowerPoints dos objectivos” sem os concretizar, e anteriormente já tinha sentenciado que “a propaganda política é o princípio e o fim do Governo do Partido Socialista”.

 

Na era das percepções criou-se o mito do governo dinâmico. Minimizadas as apropriações manhosas e pouco subtis de medidas do executivo anterior, desvalorizados os faux pas (das exigências da ministra da Saúde ao organismo errado até ao anúncio equivocado em entrevista ao Financial Times do ministro das Finanças), o que sobra é a bravata de primeiro-ministro que insiste em governar como se tivesse maioria absoluta. “Não irão conseguir impedir o Governo de governar”, exclamou o homem que evita falar, seguindo o conselho do seu mental coach Cavaco Silva ou sendo vítima da “falta de rede” (problema comum em zonas rurais). Amparado por um Presidente urbano-impressivo, o primeiro-ministro está convencido de que todos se dobrarão à sua vontade. Satisfeitas as corporações, gozando do estado de graça, com um Presidente subitamente avesso à palavra dissolução e com o líder da oposição a precisar de tempo para se consolidar como alternativa, Montenegro sente que é capaz de galgar o hiato entre os seus 78 deputados (mais 2 do CDS-PP) e os 116. O problema das percepções é que podem ser enganadoras e frequentemente volúveis. E o sentimento pode oscilar entre a consciência, o desejo e o mero palpite.

 

Imagem: portugal.gov.pt

UM CADASTRADO À PROVA DE BALA

Julho 21, 2024

J.J. Faria Santos

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In God we trust, escarrapacham os americanos nas notas de dólar. E podem confiar nos seus profetas e prosélitos? Onde acaba o interesse pessoal e começa o fervor pelo bem-estar comunitário e o desejo de expansão da fé e da vivência religiosa? Onde termina a genuína expressão da crença e começa a manipulação? Trump sentiu-se seguro após o silvo da bala lhe ter murmurado ameaças ao ouvido porque “tinha Deus a meu lado”. Homens de pouca fé logo trataram de censurar a negligência divina por não ter salvado o bombeiro que também fora atingido, mas podemos sempre supor que o  acesso à salvação se reja por uma espécie de numerus clausus: entre um meritório e compassivo soldado da paz e um candidato a Presidente que promete acabar com a guerra da Ucrânia num dia e reabilitar o sonho americano, quem é que Deus haveria de escolher?

 

A provável vitória de Trump anuncia o triunfo de uma autocracia com laivos de teocracia. Agora sim, vem aí a “carnificina americana”, despedaçando o Estado de direito, a separação de poderes e até os direitos individuais. A terra dos bravos ameaça transtornar o lar dos livres. “Todos os homens e mulheres esquecidos, que foram negligenciados, abandonados e deixados para trás, não serão esquecidos nunca mais”, prometeu o candidato em registo épico. Agora que provou ser feito da matéria dos mitos e dos predestinados, Trump insta os descamisados a não chorarem por ele, porque nunca os abandonará. Nada o deterá. O homem que se portou como um ditador sul-americano, do género dos que desprezam os resultados eleitorais e promovem sublevações sangrentas, milionário de cartoon com pose de wrestler, é agora o futuro do sonho americano. Um futuro em que a democracia americana corre o risco de se assemelhar ao WWE, isto é, uma espécie de campeonato de luta profissional, um entretenimento com protagonistas estilo Marvel, envolvidos em confrontos de resultado combinado. Poderá ser empolgante, para quem apreciar o estilo, mas já não será uma democracia plena.

A PRIMA-DONA CONTRA A CABALA

Julho 14, 2024

J.J. Faria Santos

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Esta prima-dona renega a popularidade, desdenha do “espalhafato” e despreza o “estrelato”. Confrontado, porém, o seu perfil esfíngico com afirmações “indecifráveis” e uma “campanha orquestrada”, eis que a sua recatada figura se materializou no horário nobre de um canal televisivo, numa entrevista para a qual manifestamente se preparou. O problema é que o guião que seguiu faria um “optimista irritante” parecer pessimista.

 

Na defesa acérrima do Ministério Público invocou procuradores competentes e especializados (“elevado nível técnico”), citou o “dever de averiguar” e rejeitou a existência de erros ou a necessidade de desculpas, ora porque todos as diligências são validadas por juízes, ora porque “um conjunto de pessoas entendeu que havia indícios relevantes”, ora ainda porque se vão “conhecendo elementos”. 3 arguidos detidos durante 22 dias e depois libertados pelo juiz? “Lamento que isso tenha acontecido”, disse, mas foi “excepcional”. Um político escutado ininterruptamente durante 4 anos? “Não é desejável nem comum”, mas as escutas foram autorizadas por magistrados judiciais, que certamente entenderam que era “muito relevante” que elas prosseguissem.

 

A entrevista foi uma tentativa de ajuste de contas com a actual ministra da Justiça (quem fez declarações “indecifráveis” e “graves”), com o Presidente da República (cuja acusação de maquiavelismo lhe causou “perplexidade e surpresa”) e com o ex-primeiro-ministro, que em vez de se demitir, “poderia continuar a exercer as suas funções”, seguindo o exemplo de Ursula von der Leyen ou Pedro Sánchez. E também com as pessoas que têm ou já tiveram “responsabilidades de relevo na vida da nação”, agora mancomunados numa “campanha orquestrada”.

 

Longe vai o tempo (2021) em que o então candidato único à presidência do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público, Adão Carvalho, afirmava: “Entendo que a atual Procuradora-Geral da República é distante dos magistrados, não os ouve e não os defende. (…) insistiu numa diretiva sobre os poderes hierárquicos que não foi objeto de discussão no seio do Ministério Público, que nenhum dos anteriores Procuradores-Gerais da República quis e que pode comprometer e vulnerabilizar o Ministério Público perante as tentativas externas de o manterem dentro de uma esfera de controlo, quando existem dezenas de investigações que envolvem pessoas relevantes do ponto de vista político, financeiro e económico.”

 

Agora, a PGR que diz que “não há um erro. Há uma investigação que conduzirá a uma arquivação se for esse o caso”. E defende: “os magistrados que têm a seu cargo estas investigações são de elevado nível técnico e custa-me a admitir a falta de prova”. Em resumo: dado que o Ministério Público não erra, as suas investigações não geram falta de prova, os seus funcionários são de alta craveira e as escutas ad aeternum têm o visto dos juízes, “algo obstará” a que se prescinda da “esfera de controlo” que os poderosos “em campanha” contra o MP almejam?

 

Lucília na Corporação das Maravilhas, especialista na concepção maculada de parágrafos, receosa de ser acusada de branqueamento de políticos, tomou a decisão “absolutamente excepcional [de] identificar publicamente um ‘suspeito/testemunha’ num inquérito” (Francisco Teixeira da Mota in Público). Pelo caminho torpedeou a separação de poderes e os equilíbrios do Estado de direito. Altiva e com tiques de arrogância, a PGR demonstrou que põe os seus interesses pessoais acima do bom nome dos cidadãos, e que não hesita em cavalgar o populismo em vez de praticar o rigor, a pedagogia e a estrita legalidade. Na visão maximalista e corporativista de Lucília Gago, o Ministério Público plenipotenciário é o filtro indispensável para uma acção política refém da corrupção e do tráfico de influências. No Outono, cai a folha e cai a Lucília. Seguir-se-á o/a procurador(a) do nosso contentamento? Entretanto, prosseguem os inquéritos à “influência” de Costa e à casa de Espinho de Montenegro. Se ainda não foram encerrados “é porque haverá algo a que tal obstará”. A PGR, mesmo que se esquive à imputação da intencionalidade de acções danosas, seguramente não escapará às acusações de inconsciência e irresponsabilidade.

O AGENTE EXEMPLAR E A CIDADÃ FURIBUNDA

Julho 07, 2024

J.J. Faria Santos

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Com deve actuar um agente exemplar perante um conflito entre uma cidadã e um motorista de autocarro? Se ela se recusar a ser identificada, há que imobilizá-la com firmeza, recorrendo a um mata-leão, sufocando-a e puxando-lhe o cabelo. Se necessário, que a cavalgue. Se for “um agente branco a algemar uma cidadã negra e a maioria das pessoas” nas redondezas for negra, não há que hesitar em recorrer à firme dissuasão: “levas um balázio” é uma expressão particularmente eficaz e recomendável perante gente que “não sabe as leis”. Adicionalmente, o agente exemplar deve seleccionar dois ou três destas testemunhas involuntárias e ordenar que as levem para a esquadra, onde seguindo rigorosos protocolos de comportamento e de legalidade, deve aplicar-lhes socos ou pontapés (menos agressivos ou potencialmente letais que o mata-leão – repare-se na salvaguarda da proporcionalidade), contribuindo para uma forte pedagogia de respeito pela autoridade e pela ordem, ao mesmo tempo que permite a descompressão do seu estado do tensão.  Quanto à cidadã furibunda, caso decida, como é comum nestes casos, atirar-se para o chão ou até sucumbir à cataplexia, donde pode resultar um “traumatismo cranioencefálico frontal” e uma “face deformada por hematomas extensos”, o recomendável é deixá-la sozinha, inanimada, no exterior da esquadra e chamar, compassivamente, os bombeiros.

 

A cidadã furibunda, incapaz de assegurar que a filha se munisse de um passe para poder utilizar um meio de transporte público, que “atemorizou o motorista” e “agrediu” e mordeu o agente exemplar, que utilizou uma “alopecia preexistente” para acusar este de lhe arrancar cabelo, e que “simulou um desfalecimento e ficou deitada no chão”, reclamou ter sido barbaramente agredida. Quando uma cidadã furibunda alega ter sido agredida por um agente exemplar com “socos na boca e na cara”, e insultada com expressões do género - “Grita agora, sua filha da puta, preta! Macacos, vocês são lixo, uma merda!” -, torna-se evidente, conforme jurisprudência sapientíssima do Tribunal de Sintra, que “se faz passar por vítima” para “obter uma choruda indemnização”, ao mesmo tempo que delega no “movimento anti-racista” o pagamento das despesas com a sua advogada. Trata-se, no fundo, como agora se diz, de monetizar a sua condição de pessoa racializada. O destempero, o descontrolo emocional, a agressividade, a falta de humildade e a arrogância de uma cidadã furibunda podem dar origem a uma análise equivocada que cai, como escreveu um reputado colunista no jornal Público, no “vício do racismo estrutural”, calamidade que só pode ser combatida com a sua integração no Plano Nacional para a Redução dos Comportamentos Aditivos e das Dependências.

 

Imagem: pormenor do jornal Público

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