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NO VAGAR DA PENUMBRA

NO VAGAR DA PENUMBRA

REFLEXÕES SOB O SIGNO DE AGUSTINA

Maio 17, 2025

J.J. Faria Santos

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“Iludir um povo é um crime; desiludi-lo é um erro”, escreveu Agustina Bessa-Luís. Talvez seja este o destino fatal da democracia e dos seus protagonistas, vassalos da lei e do Estado de direito, senhores de convicções, escravos dos meios de persuasão e reféns da construção de uma reputação que garanta o acesso ao poder. “Não é a lei que faz a reputação dum homem; a lei faz a decência, mas não a honestidade”, aventou Agustina. É a diferença entre a compostura e a probidade.

 

A maneira como Agustina retratou aquilo que se convencionou chamar de polarização foi a seguinte: “Os políticos nunca têm humor e agem dentro do princípio da sua razão e da desrazão dos outros.” E ninguém melhor para ilustrar esta premissa do que os políticos que se auto-excluem desta categoria, que se elevam ao lugar etéreo da depuração, a tecnocracia. Ora o tecnocrata, defende a escritora, “degrada o governo, porque conclui que ele deve imobilizar o espírito” e tem “um desprezo inveterado por tudo o que não seja um resultado numérico”.

 

Em dia de reflexão, o Presidente da República explicou que o mundo mudou por causa de Trump, que não votar seria “meter a cabeça na areia” e que, pelo contrário, votar é “contribuir para a estabilidade”. Ignoremos o “óbvio ululante” de ele ter sido o maior factor de instabilidade dos últimos anos, feito talvez explicável pela aplicação a contrario da máxima de Agustina que postula que “a mediocridade dos chefes faz a estabilidade dos Estados”. E para os que desesperam com a suposta degradação da qualidade da classe política, resta apostar no “talvez” que a nativa de Amarante colocou nesta frase: “Em toda a criatura humana há talvez a impossibilidade do invulgar”. Talvez não haja. Talvez haja a possibilidade da superação, da transcendência.

HOMENS DE POUCA FÉ

Maio 11, 2025

J.J. Faria Santos

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O cenário parece o ideal. Um incumbente que exerceu o cargo de primeiro-ministro como se estivesse numa campanha eleitoral permanente, distribuindo o excedente orçamental e criando uma ilusão de dinamismo e reformismo. Uma campanha eleitoral de facto dirigida com profissionalismo, desde o detalhe das arruadas em ruas estreitas para proporcionar imagens compactas de apoiantes até à convocatória dos ex-líderes como símbolo de unidade. Mensagens focadas procurando consolidar e alargar o espaço à direita, piscando o olho de forma pouco subtil à extrema-direita. Um candidato com uma notável falta de escrúpulos, disponível para usar como arma política a notificação de 18 000 imigrantes para abandonarem o país ou o exercício do direito à greve, e ainda para explorar a fé para reforçar o vínculo ao sentir português. Já para não falar da promiscuidade entre a “comunicação eleitoral e a comunicação governamental”, como notou Rita Figueiras no Público, a propósito da geminação da comemoração do 25 de Abril e do 1º de Maio ao som de Tony Carreira ft Luís Montenegro. Somando a isto o primeiro lugar da AD em todas as sondagens e a vitória de Montenegro em todos os concursos de Mister Simpatia face a Pedro Nuno Santos, é caso para perguntar por que razão não está a AD eufórica e confiante na “maioria maior”.

 

Mesmo que alguém da AD faça questão de proclamar que “cheira a vitória”, parece que há um défice de fé ou, pelo menos, uma dose cavalar de cautela. Há o pormenor nada despiciendo do constante “empate técnico”, e o número relativamente elevado de indecisos ou a incógnita da abstenção. E dados como os da última sondagem do ISCTE/ICS para o Expresso e a SIC: 67% dos inquiridos acham que “Portugal tem estado a ir pelo caminho errado”, 51% são da opinião de que o Governo fez um “mau trabalho” e 53% defendem que está “na altura de mudar”. Comentadores da área ideológica do Governo recusam-se a “dar por garantida uma vitória da AD” (Pedro Norton - Público), ou defendem que “com cerca de um quarto do eleitorado predisposto a votar nos outros partidos (…) da direita, parece do domínio dos milagres que a AD disponha da matemática necessária para ficar em primeiro lugar” (Francisco Mendes da Silva – Público). E há também o caso Spinumviva, que veio acentuar o perfil dissimulado, relutante e pouco claro de Montenegro na partilha de informação e nos esclarecimentos que presta.

 

Esta foi a semana em que dois episódios ambivalentes marcaram a agenda: a intervenção de Pedro Passos Coelho, desfazendo as credenciais reformistas de Montenegro, e o atestado de superioridade ética emitido por Cavaco Silva, involuntariamente hilariante, quer pelas circunstâncias que conduziram a eleições antecipadas, quer também pelo próprio perfil e tom professoral do atestante, como se se apresentasse ungido de isenção, autoridade e infalibilidade. Nas eleições legislativas de 2024, 21% dos eleitores só decidiram em quem iriam votar na última semana de campanha. Ainda há espaço para a persuasão.

MONTENEGRO PODERIA DISPARAR SOBRE ALGUÉM NA AVENIDA DA LIBERDADE QUE NÃO PERDERIA UM VOTO?

Maio 04, 2025

J.J. Faria Santos

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O Luís “gosta muito de governar” e os portugueses parecem inclinados a “deixar o Luís trabalhar”. Como o português típico, o Luís preocupa-se com o futuro dos filhos, não aprecia que lhe devassem a “vida privada”, gosta do Tony Carreira e de comemorações dedicadas à família.

 

O Luís tem uma empresa familiar. A sede é na sua moradia em Espinho de mais de 800 m2 e oito casas de banho. O contacto da empresa era, até há muito pouco tempo, o seu telemóvel pessoal. Deixou de ser sócio da empresa a 30 de Junho de 2022, mas, juridicamente, a empresa continuou a ser dele, dado que faz parte dos bens comuns do casal. Digamos que não é plausível que, num momento de desarmonia familiar, a Carla Maria, caso fosse tão fã da Ágata como ele é fã do Tony Carreira, desatasse a trautear para o Luís Filipe: “Podes ficar com as jóias, o carro e a casa / Mas não ficas com a Spinumviva”.

 

Desde Julho de 2021 até muito recentemente, o grupo Solverde pagou à Spinumviva (logo a Montenegro) uma avença mensal de 4500 €, o que levou o insuspeito João Miguel Tavares e escrever no Público que “aquilo que temos na prática é um primeiro-ministro a ser pago por empresas privadas no exercício do seu cargo. Isto vai muito para além dos conflitos de interesse. É mesmo um enorme escândalo nacional”. Do que se conhece deste e de outros clientes, o dia a dia da empresa dependia de colaboradores externos, o que não impedia margens de lucro estratosféricas. A “colaboradora” Inês Varajão Borges admitiu que a actividade da empresa era “um trabalho que se autogeria”, a partir dos clientes angariados pelo Luís.

 

Se a hipótese de o Luís ter violado a lei da exclusividade de funções divide os juristas, não parece haver dúvida de que ele foi avarento e nada exaustivo no cumprimento das obrigações declarativas inerentes ao desempenho de cargos públicos. As suas inexactidões e omissões declarativas impediram ou adiaram o escrutínio de potenciais conflitos de interesse.

 

Tempos houve em que o partido sob a liderança do Luís escarrapachou num outdoor: “Corrupção e falta de ética. Já não dá para continuar”. Era no tempo em que o Luís “não tinha mesmo limites”. Tempos houve em que o Luís defendia que escolher a “vitimização” era “não responder a nada, não esclarecer nada”. Agora, o Luís é adepto da transparência gradual, a conta-gotas, e encara o escrutínio democrático como uma afronta à sua probidade.

 

O grande trunfo do Luís é a sua ligação aos portugueses. Ele poderia disparar sobre alguém na Avenida da Liberdade (ou no Martim Moniz) que não perderia um voto. Os líderes tradicionais almejam convencer pelo dom da palavra, pela eloquência; o Luís, num patamar superior, inspira pelo silêncio, pela economia das palavras. Ele confia que os agravos, as desconfianças da elite e as agressões da bolha mediática serão trucidadas pelo sufrágio popular. Purificado e relegitimado o grande líder, teremos então um perpétuo “S. Bento em Família”. “Deixa a gente ser feliz / Deixa o Luís trabalhar/ Que um novo futuro vai acontecer”, cantar-se-á numa apoteose de fé e paroxismo. No dia 18 de Maio, longe da Cova da Iria, na sede da Spinumviva, celebrar-se-á o início do “novo futuro”, confiando que os esqueletos do passado estarão definitivamente enterrados. A menos que o inesperado aconteça.

UM FASCISTA NO PODER NA AMÉRICA

Abril 27, 2025

J.J. Faria Santos

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Jason Stanley, professor em Yale, de partida para uma universidade no Canadá, explica deste maneira em entrevista ao Expresso a sua escolha: “Não quero que os meus filhos vivam num país com um regime fascista”. Stanley acha ingénuo supor que a terra da liberdade não possa ser vítima do esboroar da democracia. E nota: “Se os alunos estrangeiros deixam de repente de se poder expressar, que garantia temos de que a seguir não seremos nós?”

 

A revista Time, a propósito da sua lista das 100 pessoas mais influentes do mundo, assinala que “nenhum outro presidente moderno tomou o controlo pela força do governo dos Estados Unidos como Donald Trump”. “Despediu procuradores e inspectores-gerais”, “descartou milhares de funcionários federais, eliminou programas de ajuda global” e esvaziou o Departamento de Educação. E ameaçou invadir a Gronelândia e retirar o apoio à Ucrânia nos intervalos da sua guerra cultural contra os programas de diversidade das empresas e das universidades. Acolitado por J. D. Vance (que a Time denomina de um dos seus “mais prolíficos attack dogs nas redes sociais”) e por Elon Musk, que a mesma revista estima que tenha gasto “quase 290 milhões de dólares em 2024 para ajudar a eleger Donald Trump e outros candidatos republicanos”, o actual presidente americano prossegue com afinco o abastardamento do sonho americano e o ataque sem tréguas à liberdade, em nome de uma noção de patriotismo  e de valores conservadores que contrariam a essência da nação.

 

Antevendo o pior, Jeffrey Goldberg, o editor da The Atlantic, escreveu na edição de Janeiro/Fevereiro de 2024, numa peça intitulada “Um aviso”, que “o Partido Republicano se tinha hipotecado a um demagogo antidemocrático, alguém desprovido de decência”. No mesmo número da revista, David Frum notou que “o desejo político supremo de Trump sempre fora empunhar tanto a lei como a violência institucional como armas pessoais de poder”. Não é difícil concordar com ele. A liberdade e o Estado de direito na América estão à mercê de um perigoso populista narcisista. E com elas a segurança e a paz no mundo. Como sintetiza António Araújo hoje no Público, do que se trata é de uma “ditadura in progress e de um homem ridículo e incompetente, mas sobretudo mafioso e muito perigoso”.

 

Imagem: Daniel Torok / Wikimedia Commons

CHAMPANHE? COCAÍNA? NÃO, APENAS O TEU ROSTO FABULOSO

Abril 19, 2025

J.J. Faria Santos

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Era uma vez uma pessoa cuja história era demasiado triste para ser contada, porque praticamente tudo a deixava indiferente, serva de uma apatia a caminho da modorra. O milagre da excepção ocorria, porém, quando, comprazendo-se num passeio tranquilo destinado a combater o aborrecimento que a consumia, se via subitamente revigorada e encantada pela aparição de um rosto fabuloso.

 

Bebidas espirituosas não lhe alteravam a consciência, porque o álcool não lhe despertava emoções intensas. E a cocaína não a levava a visitar o país da euforia, visto que estava certa de que se aspirasse umas gramas se sentiria terrivelmente entediada. Conformada, admitia repetidamente, com mais deleite que incompreensão, a excitação pela visão do rosto fabuloso de alguém de quem não esperava reciprocidade.

 

Era uma vez uma pessoa que confessava que a beleza é um estimulante como nenhum outro, viciante e arrebatador, que causa euforia e prejudica o discernimento. Mas quem lhe resiste? Mesmo que saibamos que a ressaca virá, o futuro, como o amanhã, como diz outra canção, é sempre longe demais.

 

A história demasiado triste para ser contada foi cantada por inúmeros intérpretes. Sou suspeito e nada imparcial, mas a versão de Ella Fitzgerald parece-me insuperável. I Get a Kick Out of You foi escrita por um Cole Porter inspirado, capaz de fazer rimar “quiet spree” com “old ennui”. E que, quando o musical da Broadway Anything Goes foi transposto para o cinema, para contornar a censura, alterou “Some get a kick from cocaine” para “Some like the perfume from Spain”.

 

Fotos: Cole Porter e Ella Fitzgerald (Wikimedia Commons)

IRS: O CASO DO REEMBOLSO DESAPARECIDO (FAQS)

Abril 12, 2025

J.J. Faria Santos

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Houve ou não um desagravamento do IRS para os rendimentos de 2024?

Claro que sim. O Governo, inaugurando um padrão de falta de transparência e de propaganda sem pudores de rigor, começou por anunciar um corte de 1500 milhões de euros. Mais tarde o ministro da Finanças foi forçado a clarificar que este valor incluía uma redução de 1327 milhões já deliberada pelo executivo de António Costa. Posteriormente o Governo de Montenegro recalculou o corte de Costa para os 1 160 milhões e propôs um alívio adicional de 340 milhões. Como o PS discordava da distribuição do desagravamento pelos diversos escalões, apresentou a sua própria proposta, que viria a ser aprovada, representando um custo fiscal de 450 milhões. Ou seja, o desagravamento total de 1610 milhões de euros corresponde ao proposto pelo PS.

 

Mas se houve uma baixa no IRS, por que motivo os reembolsos são menores e há contribuintes a ter de pagar imposto além do que já retiveram?

Como as retenções na fonte são um adiantamento mensal por conta do imposto a liquidar na sequência da apresentação da declaração de IRS, a forma mais fácil de determinar se se paga mais ou menos IRS é comparar na demonstração de liquidação de IRS/simulação o valor inscrito na linha colecta líquida do ano corrente com o do ano transacto. É a diferença, positiva ou negativa, entre a colecta líquida e as retenções na fonte que determina se há reembolso, pagamento adicional ou até mesmo nenhum valor a regularizar. Portanto, quem reteve menos fica sujeito a um reembolso menor ou até a um pagamento.

 

E se tiver havido uma disparidade significativa no rendimento de um ano para o outro, como posso saber se houve ou não um desagravamento efectivo?

Pode sempre comparar a taxa efectiva de tributação, que se determina dividindo a colecta líquida pelo rendimento colectável.

 

Faz sentido preparar tabelas que reduzem as retenções para no final o reembolso ser diminuto e em muitos casos o contribuinte ter de pagar?

A situação ideal seria a de que após a apresentação da declaração de IRS o declarante não tivesse nada a pagar ou a receber. Como tal não é muito fácil de aplicar de forma universal, tendo em conta, nomeadamente, os diferentes tipos de rendimento e, sobretudo, as deduções à colecta que variam de contribuinte  para  contribuinte, eu diria que o adequado será a elaboração de tabelas de retenção conservadoras que privilegiem uma eventual retenção em excesso em alternativa a retenções escassas que possam dar origem a pagamentos significativos.

 

O Governo fez mal em ter mexido nas tabelas de retenção da forma como o fez?

O Governo fez questão de que as pessoas sentissem o desagravamento fiscal no rendimento disponível no final de cada mês, ou seja, menos imposto retido e mais ordenado líquido a receber. Preparou, inclusivamente, tabelas de retenção especiais para dois meses (Setembro e Outubro) de forma a gerar um efeito retroactivo de alívio fiscal. A retenção praticada nestes dois meses, bastante reduzida ou até inexistente no caso dos rendimentos mais baixos, acabaria por gerar alguma dificuldade às entidades empregadoras para explicar por que motivo a retenção baixava drasticamente nestes dois meses e tornava a subir em Novembro, ainda que para valores inferiores a Agosto.

Na altura a Deco já alertava que o efeito de diminuição do valor dos reembolsos e para casos em que haveria pagamento. Esta semana, ao jornal Expresso, Miguel St.Aubyn, professor catedrático de Economia no ISEG, declarou que caso “contribuintes de baixo rendimento” tenham de pagar IRS com a entrega da declaração modelo 3, “estaremos perante um sobreajustamento. Teria sido preferível um ajustamento mais gradual das tabelas de retenção”.

 

Os cálculos políticos ter-se-ão sobreposto à prudência técnica?

É altamente provável. O que poderá ter levado o Governo a valorizar o “rendimento disponível para as famílias” ao longo do ano de 2024, e a desvalorizar o impacto num orçamento familiar sob pressão, e sem elasticidade para suportar gastos inesperados, de um pagamento de IRS em 2025 da ordem das centenas de euros ou até de milhares. Não terá estado ausente do espírito dos governantes a hipótese de tirar dividendos políticos do efeito na liquidez das famílias de um “sobreajustamento” cujo efeito mais notório poderia coincidir com eleições antecipadas motivadas pelo chumbo do orçamento. Curiosamente, em Julho, ainda antes de Marcelo ter promulgado a descida adicional proposta pelo PS, o ministro das Finanças temia pela perda de receita. O Presidente da República, numa daquelas notas em que a ironia se cruza com o maquiavelismo, fez questão de notar que “o momento da repercussão nas receitas do Estado está dependente da regulamentação do Governo, através da fixação das retenções na fonte, pelo que podem também só ter impacto no próximo ano orçamental”. Se estava preocupado com a perda de receita, o Governo poderia ter optado por não ter mexido nas tabelas de retenção, que já tinham sido alteradas no início do ano, incorporando a redução significativa do IRS orçamentada por António Costa. De certa forma, Montenegro preferiu o “impacto no próximo ano orçamental”. 2025. Para os contribuintes.

 

Ilustração: Image by storyset on freepik

A PERCEPÇÃO DE QUE MONTENEGRO É O MAIS BEM PREPARADO PARA GOVERNAR

Abril 06, 2025

J.J. Faria Santos

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Sabemos que o incumbente está sempre em vantagem. Vestido o fato de primeiro-ministro, adquire solenidade, alguma pompa e a autoridade do conhecimento a que só os ungidos acedem. Na recente sondagem da Universidade Católica, os portugueses consideram que Luís Montenegro é o mais bem preparado para governar, por comparação com Pedro Nuno Santos. O que alimentará esta percepção?

 

Os inquiridos pelo estudo consideraram o actual primeiro-ministro mais bem preparado para o cargo (46% / 31%), mais competente (44% / 31%) e mais capaz de promover o crescimento económico (50% / 30%). Em que consistirá esta vantagem comparativa?  Na licenciatura em Direito e na pós-graduação em Direito de Protecção de Dados Pessoais, por comparação com a licenciatura em Economia do líder do PS? Na experiência empresarial no ecossistema de Espinho e arredores? E se a economia cresceu em 2024 menos do que em 2023, o que é que o torna mais capaz de promover o crescimento económico? Algum programa miraculoso ainda na incubadora ou a profissão de fé no efeito indutor de crescimento do PIB da redução do IRC? Seguramente que não pesará no julgamento que os portugueses fazem da sua preparação para o cargo a capacidade de gerar consensos ou a experiência no serviço público, casos em que, respectivamente, as pastas de secretário de Estado dos Assuntos Parlamentares e de ministro das Infra-estruturas e da Habitação conferiram a Pedro Nuno Santos tarimba e perspectiva.

 

O primeiro-ministro e o líder do PS surgem empatados no item da capacidade para combater a pobreza (36%), o que pode ser resultado do capital adquirido pelos socialistas, fruto da sua acção governativa. O esforço da AD para reforçar os rendimentos dos reformados (numa dimensão inferior à dos governos socialistas anteriores) e alargar os beneficiários do CSI pode ter sido insuficiente. E se a vantagem que Montenegro tem na capacidade para resolver os problemas da habitação (42% / 31%), não obstante não se terem verificado melhorias significativas, pode ser interpretado como uma censura ao desempenho ministerial de Pedro Nuno Santos, a crença no talento de Montenegro para resolver os problemas da saúde (39% / 33%) é quase do domínio do sobrenatural, dado o desempenho desastroso da ministra.

 

Uma nota final para destacar que os inquiridos na sondagem consideraram o primeiro-ministro mais honesto (35% / 32%) e mais digno de confiança (40% / 34%) do que o seu adversário socialista. É importante referir que, por comparação com o estudo anterior de Fevereiro de 2024, houve uma quebra acentuada na dimensão da honestidade (vantagem reduzida de 13 pontos percentuais para apenas 3) e uma erosão bastante significativa da confiança (vantagem de 11 pontos percentuais reduzida para 6).Tendo em conta que 60%  dos entrevistados consideraram que Montenegro deveria ter encerrado a sua empresa familiar, que  69%  foram da opinião de que os seus esclarecimentos foram insuficientes e que 46% defenderam que teria sido preferível que ele se tivesse demitido (ocorrendo a nomeação de outro primeiro-ministro da área do PSD), é natural que tenham sido afectadas a confiança e a percepção da honestidade do primeiro-ministro. É compreensível que a confiança seja corroída pela percepção de que um primeiro-ministro esquivo e sinuoso nas suas explicações prefira faltar a uma cimeira europeia para jogar golfe com um amigo, cuja empresa, por coincidência, contribui significativamente para os lucros da Spinumviva,  empresa familiar para todo o serviço.

 

Ninguém sabe como evoluirão estas percepções até ao dia das eleições. Se prevalecerá a ideia de colar o rótulo de radical e de impulsivo a Pedro Nuno Santos. E se Montenegro será premiado pelo seu estilo comunicacional altamente controlado e avarento, como se a escassez da palavra alimentasse a imagem do fazedor (ou doer como diria Passos Coelho), que só não parece radicalmente ascético porque ele permite que o esgar de um sorriso assente nos seus lábios. Pode ser que o homem que Miguel Poiares Maduro disse que “transforma o escrutínio numa ofensa” vença cavalgando a vitimização, e a eventual vontade do eleitorado de que a alternância tenha mais tempo para mostrar o que vale. Ou não vale.

A ENTREVISTA DO ENTERTAINER AO PRIMEIRO-MINISTRO FOI FUNTÁSTICA

Março 29, 2025

J.J. Faria Santos

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O primeiro-ministro foi entrevistado por uma pessoa que “confia” nele e que nas últimas eleições, “por ter memória”, votou “pela mudança”. Luís Montenegro aprecia as entrevistas cozy, conduzidas por correligionários, sejam eles a inefável Maria João Avillez, com a indisfarçável cumplicidade com que questiona os que aprecia, ou o flamboyant Manuel Luís Goucha, que, denotando preparação nas entrevistas que conduz, privilegia, naturalmente, um registo lúdico.

 

Acontece que, no entanto, Goucha não resistiu a duas ou três ferroadas nos primeiros minutos da entrevista, antes de ela se ter deslocado quase definitivamente para um território intimista, propício a captar ou consolidar o voto do segmento das donas de casa e dos reformados. Logo a abrir, evocando uma polémica com a comunicação social, Manuel Luís Goucha, com o ar divertido de quem vai largar uma provocação menor, advertiu o seu entrevistado nestes termos: “Deixe-me dizer-lhe que no meu auricular eu só ouço os tempos. 40 minutos para esta entrevista.”  Um pouco mais à frente, quando o primeiro-ministro resumia a embrulhada em que se deixou enredar com a frase “Eu sou acusado de ter trabalhado”, o entertainer largou um “Mas não é por aí que vêm os problemas…”, para logo de seguida, suavizando o contraditório, dizer-lhe: “O senhor não é suspeito de coisa alguma.”

 

Montenegro sabe de onde é que “vêm os problemas”. De tal maneira que, a propósito da passagem da quota da Spinumviva, começa a elaborar. “Podia-me eu ter lembrado que pelo facto de estar casado no regime de comunhão de adquiridos, de alguma maneira…”, o que motivou uma interpelação de Goucha, entre o folgazão e o incrédulo: “Um advogado não se lembrou disso?” A resposta, ao lado, foi esta: “Não, porque é assim: eu estava-me a desvincular, como me desvinculei, completamente da actividade daquela empresa. E a empresa tinha uma actividade regular que não precisava de mim.”

 

A entrevista decorreu num tom amigável de tertúlia, sempre pontuado pelo omnipresente sorriso que aflora aos lábios do primeiro-ministro, cujo propósito poderá ser transmitir descontracção, mas que com frequência adquire um travo trocista. Foi, por isso, algo a despropósito e fora do contexto, que surgiu a cena da “exaltação”, o momento em que Montenegro bradou: “Eu não posso ser associado a nenhum comportamento de corrupção porque eu nunca tive nenhum acto de corrupção. Nunca! (…) Eu nunca fui suspeito nem posso ser. Peço muita desculpa. Isto não pode acontecer. E quem disser o contrário, tem de provar. Eu não posso aceitar a ninguém que diga uma coisa dessas!” Caso Montenegro estivesse a usar um auricular, eu diria que um assessor lhe teria soprado ao ouvido que não se esquecesse da cena da indignação. A inserção algo despropositada desta rábula na entrevista e a flutuação no tom, calibrado para transmitir agastamento sem se tornar demasiado estridente, contribuíram para uma sensação de artificialidade.

 

Manuel Carvalho escreveu no Público que “não há político contemporâneo que saiba usar melhor o malabarismo ou a sonsice em proveito próprio que Luís Montenegro”. “Corrupção e falta de ética, já não dá para continuar”, clamava um cartaz da AD na eleição em que Goucha votou pela mudança. A entrevista do entertainer ao primeiro-ministro foi funtástica. Montenegro clamou que nunca teve “nenhum acto de corrupção”. A ética, agora, deve ser como o passado: um país estrangeiro, e o PSD, já sabemos, é o “partido mais português de Portugal”.

SERVIÇO DE URGÊNCIA

Março 22, 2025

J.J. Faria Santos

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A paciente (designação mais apropriada do que utente ou doente) ligou para o SNS24 convencida de que o resultado seria a marcação de uma consulta de cuidados primários para o dia seguinte. Volume de chamadas significativo. Espera. Sugestão de triagem digital, que teve como resultado o encaminhamento para confirmação clínica por um profissional de saúde. Perante um quadro de “expectoração difícil de mobilizar” e alguma tosse, a recomendação acabou por ser, provavelmente tendo em conta a idade, as morbilidades crónicas e o princípio da precaução, a ida ao serviço de urgência.

 

Pouco depois da nove da noite deixei a paciente, autónoma, a pouco mais de um mês de completar oito décadas de vida, à entrada da Urgência e fui estacionar o carro. Reencontrei-a escassos minutos depois na antecâmara da triagem, onde lhe foi atribuída a pulseira amarela (o risco existe, mas não é imediato e o tempo de espera médio é de uma hora).

 

A sala de espera (mais uma vez, uma designação de uma exactidão inexcedível) é um aglomerado de casos clínicos heterogéneos. O homem magro e calvo com sinais de trombose venosa e que, ao telemóvel, explica a alguém que as análises vão reflectir a quimioterapia que está a fazer; a mulher serena e radicalmente realista que se prepara para esperar horas, e que especula que se for para ser tratada com “ben-u-ron e Voltaren”, prefere ir já para casa; a jovem com excesso de peso, deitada em 3 bancos, agarrada ao soro, com tosse cavernosa (mais tarde, a mulher serena irá colocar o soro no suporte com rodas e alguém chamará um enfermeiro porque não se notava gotejamento); a mulher debilitada que repousa no cadeira de rodas e que treme continuamente, segundo o marido devido à ansiedade; o jovem de casaco de cabedal que parece estar a ter um ataque de soluços ou então a reprimir o vómito.

 

Pouco depois da meia-noite acompanho a paciente à consulta. O jovem médico de barbas, diligente e compenetrado, confere a medicação que ela toma, inquire sobre sintomas, mede a tensão arterial, despista a possibilidade de febre e ausculta com o estetoscópio os murmúrios do corpo. O diagnóstico inicial parece relativamente benigno. Prescreve análises e um raio-x. A paciente preocupa-se com mais tempo de espera. “Não vai demorar muito”, alvitra o jovem médico, que se mostra agradado com o meu comentário: “É o tempo que for preciso”.

 

A enfermeira loura, que já entrara e saíra da sala de espera vezes sem conta, vem colher o sangue da paciente que, no final, salienta a necessidade de apertar bem o penso devido ao facto de estar a tomar um anticoagulante. (O resultado das análises demora duas horas.) Pouco depois a mulher ansiosa tremelicante também se deita nas cadeiras. Olho, com inveja, o homem imperturbável que lê um livro. Passei a noite, parafraseando a epígrafe do Ensaio Sobre a Cegueira, a olhar para o canal Hollywood sem verdadeiramente o ver, ou então a ver sem verdadeiramente reparar. Pouco depois a paciente vai fazer o raio-x. É seguir a linha, não há extravio possível. No corredor, que vislumbro pela porta entreaberta, passam cadeiras de rodas, macas, pessoas novas e velhas, erectas ou encurvadas, médicos apressados, enfermeiras atarefadas e doentes em rotação entre as salas de espera, a consulta e a realização de exames. E há a chamada dos doentes. Os nomes repetem-se toda a noite como uma melopeia. Todos os nomes.

 

Pouco depois da quatro e meia da manhã, por fim, a paciente teve alta. Diagnóstico: “quadro sugestivo de IVAI [infecções das vias aéreas inferiores] de etiologia viral”. Medicada, com indicação para reavaliação pelo médico assistente, foi alertada de que determinada sintomatologia requereria nova ida ao serviço de urgência. A noite foi cansativa, mas o profissionalismo, a humanidade e até a afectividade do corpo clínico foi, em condições difíceis, assinalável. A enfermeira loura tratava as mulheres por “minha querida”, e por “jovens” os homens que eram tudo menos isso.

 

À saída peço à paciente que aguarde enquanto vou buscar o carro ao parque. Não sinto o frio. Nos hospitais é como nos estúdios de TV: é Verão todo o ano. O conforto adquirido no interior serviu de barreira ao choque térmico externo. De regresso, avanço com a viatura pela zona reservada às ambulâncias em vez da destinada aos restantes veículos. O segurança, que ladeava a paciente, espraia-se em gestos largos, como se eu tivesse cometido uma transgressão imperdoável. Não há ambulâncias à vista, nem outros carros. Somos apenas nós: a paciente, eu e o porteiro da noite. Que até foi meu colega de escola. “Lembras-te de mim?”, pergunta com um sorriso largo. Claro que sim. Às vezes, em noites frias e insones, tudo o que temos é a memória.

ESTADO DE CHOQUE

Março 16, 2025

J.J. Faria Santos

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O PSD está em estado de choque. Os sintomas de um choque traumático incluem sentimentos de ansiedade, desespero, raiva e irritabilidade, bem como alterações cognitivas que afectam a capacidade de concentração e o raciocínio lógico, não sendo de excluir as manifestações de paranóia, com a concomitante interpretação distorcida da realidade ou o delírio persecutório.

 

Manuela Ferreira Leite foi ao conselho nacional do partido asseverar, a propósito das polémicas que têm envolvido o primeiro-ministro, que nunca tinha visto “nada tão baixo na política portuguesa”. E acrescentou: “Isto é o caminho certo para a ditadura, é o contrário da democracia.” Claro que, tratando-se da ilustre militante que em tempos aventou se não seria “bom” haver “seis meses sem democracia”, ficámos sem perceber se teme pela democracia ou se se tratou de mais um assomo de ironia pouco fina.

 

Por outro lado, um seu ilustre par (que é PAR), terá vociferado que “Pedro Nuno Santos fez pior à democracia em seis dias do que André Ventura em seis anos”. Pode Aguiar-Branco afirmar esta barbaridade no uso pleno da sua “liberdade de expressão”? Na minha opinião, pode. Mas não devia. Como ele é um homem do Norte, ocorre-me logo à memória um sketch do Herman Enciclopédia, onde havia sempre alguém a implorar perante um ilustre de cabeça perdida: “Oh senhor engenheiro, não se desgrace!” A afirmação de Aguiar-Branco foi proferida à porta fechada, mas como se encontra transcrita numa “notícia” no site do PSD, isto só pode significar que o partido assumiu quê está numa relação com a desorientação e com a hipérbole destrambelhada.

 

O jovem prodígio Bugalho terá dito, com uma originalidade fulgurante, que o PS é um “Chega de esquerda”, que protagonizou um “assalto institucional”. E, na mesma linha, Luís Campos Ferreira acusou o PS de ser “a corista ordinária do Chega”. Para o secretário-geral socialista, Hugo Carneiro reservou o epíteto de “charlatão”, ao passo que Emídio Guerreiro, fazendo jus ao nome, terá sido, segundo o Expresso, “particularmente duro”, acusando Pedro Nuno Santos de ser um “menino do papá” (como é que ele recuperará deste golpe?) e viver “da mesada do papá” (com sorte ainda obtém a simpatia e os votos dos pais que vivem em economia comum com filhos sem condições económicas para se emanciparem…)

 

No final da reunião, Luís Montenegro declarou-se confiante, como “já estava”. Tempos houve em que o partido teve um líder que prescreveu um “banho de ética”. Agora(quase) todos defendem que não convém deitar fora o poder com a água do banho. Montenegro será um trunfo. O Governo satisfez as corporações com o excedente herdado e a barreira de propaganda procura sustentar o mantra do “governo em movimento”. É certo que há cada vez mais brechas no comentariado de direita, que o vê como um activo tóxico, mas prognósticos só no fim do jogo.

 

Imagem: www.psd.pt

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