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NO VAGAR DA PENUMBRA

NO VAGAR DA PENUMBRA

A IMPORTÂNCIA DE SE CHAMAR SOARES DOS SANTOS (OU AZEVEDO)

Março 26, 2023

J.J. Faria Santos

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Os ricos, no seu habitat natural, amparados pelo abundante cash-flow das suas cash-cows e sobretudo iluminados pelo fulgor da meritocracia, apreciam avaliar depreciativamente os subordinados, os insubordinados e a classe dirigente.  Belmiro de Azevedo, por exemplo, referindo-se ao actual comentador-em-chefe da SIC, disse: “Marques Mendes nem para porteiro da Sonae servia”. Já Alexandre Soares dos Santos foi ligeiramente mais generoso com um ex-primeiro-ministro: “Contratava o Sócrates. Entrava como trainee. Ia fazer estágio de loja.” Como quem sai aos seus não degenera, os herdeiros prosseguem a mesma linha majestática, reclamando uma superioridade natural, ostentando uma condescendência enjoada com um país que não os merece e um brutal desprezo por uma classe política e por um regime que encaram como um estorvo.

 

Se Cláudia Azevedo optou por contestar num tom institucional a ideia de que as empresas de distribuição se estavam a aproveitar da subida da inflação para aumentar as margens de lucro, atribuindo hipoteticamente a culpa ao “presidente da Rússia, à China e à seca”, Pedro Soares dos Santos preferiu a linha dura: o diálogo com o Governo só existirá se este se “tornar honesto” e “o Estado português foi quem mais beneficiou com a inflação e quem menos fez pelas pessoas”. Se o pai considerava que “em Portugal não há democracia”, o filho considera que para que todos ganhem basta “o mercado e a livre concorrência” funcionarem. Se o progenitor afirmava não gostar de sindicatos, o herdeiro valoriza a “paz social” e lamenta não ter “mais flexibilidade na contratação e na dispensa das pessoas”. Porquê? Numa tese certamente empírica (e de uma originalidade assinalável) defende que “há muita gente que às vezes desiste de trabalhar. Querem emprego, mas não querem trabalho.”  

 

Embevecido e entusiasmado com a voz grossa dos privilegiados, João Miguel Tavares (JMT) escreveu no Público um artigo acerca da importância do fuck you money, definido como a “quantidade de dinheiro necessária para podermos mandar um indivíduo ou uma organização pró c****** sem que a nossa vida fique arruinada”. Os Azevedo e os Soares dos Santos podem, pois, criticar com violência o Governo porque são muito ricos. Para reforçar a coisa, JMT alude à “profundidade da ligação histórica entre o dinheiro e a liberdade de opinião”. O que nos poderia levar a considerar que só teriam liberdade de opinião os 5% da população que em Portugal concentram cerca de 42% da riqueza. Ou os 10% que acumulam 25% do rendimento do país. Não fosse, claro, o caso dos milhões de portugueses que numa qualquer altura, em diferentes fases da sua vida, emitiram as suas opiniões livremente, se manifestaram nas ruas ou exerceram o direito à greve, prescindindo de parte de um vencimento muitas vezes exíguo (uma espécie de fuck me money).

 

“Portugal é um assunto demasiado sério para ser deixado apenas nas mãos dos governos”, concluiu o colunista em defesa da “palavra a dizer” que o sector privado deve ter em relação aos gastos do Estado. Como tal já sucede ao nível, por exemplo, do Conselho Económico e Social e da Comissão Permanente de Concertação Social, resta perceber o alcance das palavras de JMT. Quanto à mais-valia do fuck you money, basta pensar no exemplo lapidar de Donald Trump para arrepiar caminho. Recriar Clemenceau pode ser vistoso, mas confiar demasiado no bom senso e na generosidade de uma oligarquia de ego inflado pode ser a receita para fuck up um país.

 

O NOVO HOMEM DO LEME

Março 19, 2023

J.J. Faria Santos

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“Aqui ao leme sou mais do que eu: / Sou um povo que quer o mar que é teu”, dirá Gouveia e Melo ao “mostrengo”, que nada mais poderá ser que o fantasma de letargia, fraqueza e desorganização que nos tolhe enquanto nação. Depois de ter comandado a inoculação contra a covid-19, eis que se vê confrontado com o vírus da indisciplina no seu core business, frisando que “a disciplina não é, nem nunca será, um mero acto de submissão, mas sim de um verdadeiro autocontrolo e entrega”.

Se atentarmos na fita do tempo dos acontecimentos, verificámos que tivemos direito a uma alusão cinematográfica (Revolta na Bounty) e à flagelação pública dos insubordinados (com nova referência hollywoodesca: a Marinha não envia “navios e guarnições para missões impossíveis”), acabando o almirante por derivar para umas insólitas considerações de teor político.

 

É tendo em conta este último aspecto que não podemos deixar de concluir que Gouveia e Melo parece ter perdido a noção da “disciplina como autocontrolo”. «Parece-me que muitas motivações para o circo que se instalou à volta deste caso, apesar da sua gravidade, não têm unicamente a ver com este facto mas são por causa da popularidade que me tem sido atribuída», disse o Chefe da Armada ao Nascer do Sol, numa tirada a leste das suas funções e indiciadora de que os seus interesses privados possam colidir com o exercício de um cargo na Marinha em que convém que a firmeza e a competência andem de braço dado com a discrição, e a ambição pessoal seja subalternizada ao bem comum.

Num artigo particularmente cáustico, intitulado “Ambição sem princípios”, Pacheco Pereira escreveu no Público que se “o almirante vai continuar a usar o cargo para promover ou defender a sua candidatura presidencial, devia abandonar as funções ou ser demitido por alguém”. Bem vistas as coisas, a narrativa de que o PCP terá estado por detrás do movimento dos 13 militares vem alimentar uma conjuntura política em que o adjectivo comunista tem sido arremessado com assinalável leviandade, e pode ser mais uma medalha  no peito do putativo candidato outsider da direita.

 

Ao Nascer do Sol, o major-general Carlos Chaves declarou que o almirante é visto por muitos na classe política como “um homem a abater”, afiançando que ele “mete medo a muita gente”, sobretudo políticos que “vêm de carreiras partidárias, familiares, mafiosas, e que sabem que com ele num lugar de responsabilidade há muita coisa que acabaria”. Eis, em todo o seu “tenebroso esplendor”, o retrato do impoluto homem providencial pronto para limpar o país da corja nepotista e incompetente. Rodeado por esta aura populista e militarista, que sabemos do pensamento e das ideias políticas deste novo almirante sem medo? Sim, porque um Presidente é um actor político, não é um candidato a salvador da pátria com uma auto-estima exacerbada e um sentido agudo de disciplina. Não lhe basta murmurar uns versos de Pessoa: “Meu pensamento é um rio subterrâneo / Para que terras vai e donde vem?”

 

Imagem: www.defesa.gov.pt

TUDO EM TODO O LADO AO MESMO TEMPO

Março 12, 2023

J.J. Faria Santos

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Quase ao bater do minuto 50, em resposta a António José Teixeira, o Presidente balbuciou: “Pois é. Mas eu, eu, eu não me sigo, eu não, não me defino por sondagens.” Que os dois entrevistadores tenham mantido alguma circunspecção e não tenham desatado às gargalhadas é uma demonstração do seu profissionalismo. O Presidente que não se “define” por sondagens tinha minutos antes explicado que existe uma alternativa “aritmeticamente”, mas não “politicamente”, porque “a maioria das sondagens” mostra uma percentagem de votos nos partidos de direita e centro-direita superior aos da esquerda, mas isso resulta numa “alternativa fraca de liderança” devido ao facto de o “partido mais importante daquela área não ter o dobro do somatório dos outros dois”. Da última vez que o PR “não se definiu” por sondagens, anteviu uma votação fragmentada e acabou surpreendido por um empate técnico que resultou em maioria absoluta.

 

Pois é, os portugueses preferiram “uma maioria requentada”, “uma maioria cansada” à pujança do rioísmo suportado pelo impulsivo e dinâmico Ventura, e o resultado foi uma “legislatura um pouco patológica”, em que “durante seis meses, presidentes e primeiros-ministros trataram da guerra”. Olha que maçada, a guerra a obrigar-nos a tratar do imediato e a adiar os grandes desígnios de médio e longo prazo. Marcelo disparou em todas as direcções: contra um primeiro-ministro que “olha para o lado cheio do copo” (no seu olhar de geometria variável o “optimismo irritante” de Costa é tão pernicioso quanto o “pessimismo” de Passos); contra uma oposição “fraca na liderança”; contra incertos (as grandes cadeias alimentares?), em relação aos quais “se fica com a sensação de que há um aproveitamento” que se reflecte na inflação; contra a Igreja Católica, que “foi uma desilusão” na reacção às denúncias da comissão independente.

 

Confesso que olho com cepticismo para declarações como as de Sérgio Sousa Pinto no Expresso (Marcelo como “aliado político do Governo”) e as de Luís Paixão Martins ao Público (“O Presidente tem uma relação especial com o dr. António Costa, por não conseguir ter uma relação normal com a sua família política.”) A razão é muito simples: o Presidente só é aliado dele próprio. E depois de ter alimentado as expectativas mediáticas sucessivamente com Montenegro, Moedas e Passos, o grande objectivo da sua Presidência, a seguir a manter e se possível elevar os seus níveis de popularidade, é “restabelecer” a relação com o seu partido e conduzi-lo ao poder. Para tal não bastarão escaramuças e demissões no Governo ou um “panorama desgraçado do ponto de vista da execução do PRR”. Talvez uma “desgraçada situação económica e social do país” lhe sirva para invocar estar em causa o regular funcionamento das instituições democráticas, mas tal conjuntura poderia implicar também um golpe na sua taxa de popularidade. Um dilema. Às vezes, neste mundo, acontecem coisas “que são do outro mundo”, o que deve constituir um desafio estimulante para quem tem vocação para futurologista e encenador, aprecia golpes de teatro e estima “repensar a realidade”.

 

A grande missão que Marcelo tomou como sua é exigir, aos outros,  tudo em todo o lado ao mesmo tempo. No seu papel de comentador emérito, e Presidente nas horas vagas, paira etereamente sobre os comezinhos limites da realidade. Ele inspira, os outros que transpirem.

COMUNISTAS ACIDENTAIS

Março 05, 2023

J.J. Faria Santos

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Como notou esta semana Helena Roseta, o arrendamento forçado consta da Lei da Bases da Política Pública de Solos, legislação promulgada em 2014 com a assinatura de três renomados “comunistas”: Assunção Esteves, Cavaco Silva e Pedro Passos Coelho. Nesse mesmo ano, Rui Moreira, preocupado com “o crescimento vertiginoso das transacções na baixa e no centro histórico da cidade”, receoso de que “a população autóctone” pudesse “ser expulsa” e declarando não querer “transformar o Porto na República Dominicana das cidades”, admitiu , “no limite”, avançar com expropriações para proteger espaços de interesse municipal. Uma pulsão “bolivariana”, portanto. Donde, “comunista”.

 

Se das personalidades passarmos para as nações, no Reino “comunista” da Dinamarca o dono de um imóvel que esteja desocupado mais de 6 semanas sujeita-se à obrigação de o arrendar. Já no Reino Unido, se uma casa estiver desabitada durante mais de 2 anos pode ser requisitada para posterior arrendamento a preços acessíveis. O mesmo sucede na comunidade autónoma “comunista” da Catalunha.

 

É irónico que políticos e comentadores (sem esquecer que há muitos que acumulam as duas funções) ideologicamente motivados e empenhados como Paulo Portas e Marques Mendes (que aludiu a um “ataque de socialismo radical”) clamem por uma deriva esquerdista, sem grande preocupação em analisar com profundidade as medidas em discussão, embarcando com volúpia na análise superficial. Quanto ao comentador-mor, chamou “melão” ao pacote de medidas para a habitação. Se for como o fruto de casca resistente e polpa suculenta, com propriedades que fortalecem o sistema imunológico, pode ser que as medidas para a habitação acabem por deixar algumas individualidades com um grande melão. Às vezes o soundbite bites back.

 

Imagem: 24.sapo.pt / Lusa

O SENTIDO DO FIM (DA LEGISLATURA)

Fevereiro 26, 2023

J.J. Faria Santos

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A síntese estava estampada na primeira página do Público: “Portugueses dão negativa ao Governo, mas querem que fique até ao fim”.  53%  acham que o Governo é mau ou muito mau, mas 70% consideram que “é melhor para o país” que ele cumpra o mandato. Passada a perplexidade inicial (serão os portugueses masoquistas? Irresponsáveis? Inconsequentes?), eis que os politólogos se apressaram a adiantar duas explicações, que podem ser exclusivas ou cumulativas: a preferência pela estabilidade política e a falta de uma alternativa credível.

 

A própria sondagem do Cesop indicia que Luís Montenegro é apenas menos mau do que Rui Rio. A oposição em geral, porventura espicaçada pelo rol de casos que assolou o executivo, uns reais, outros mais ou menos artificiais, tem optado por carregar nas tintas e desafiar o delírio. Montenegro achar que Costa está a exibir a sua “faceta de comunista” ou Rui Rocha a denunciar o “gonçalvismo” e a “agressão insustentável à propriedade privada” são exemplos de reacções desproporcionadas que retiram credibilidade aos seus autores no eleitorado central que decide eleições.

 

Por outro lado, parece evidente que após sete anos de poder, marcados por uma pandemia, pelo regresso da guerra à Europa e pelo retorno da inflação, a circunstância da existência de uma maioria absoluta revelou cidadãos mais exigentes, como se tivessem acabado os álibis para a persistência dos problemas crónicos da vida portuguesa. Daí o crescendo de reivindicação e o multiplicar das acções de protesto, podendo extrapolar-se que os portugueses, para além das razões relacionadas com a sua situação pessoal, se possam sentir mais livres para protestar, conscientes de que esse facto não porá em causa a estabilidade política.

 

A figura-chave do jogo político português continua a ser António Costa. Nunca suscitou grandes paixões, embora concite ódios colossais. Reúne a seu favor a experiência, a inteligência, a frieza e o sentido táctico, e transmite uma segurança assente no bom senso e na moderação. E contrariamente ao chavão, não é desprovido de sentido estratégico ou visão de futuro, simplesmente tem um sentido agudo da política como arte do possível. É por isso que com um empate técnico no tempo regulamentar, ele acaba por ganhar nos descontos ou no prolongamento. Até um dia, claro. Mas isso, para recorrer a outro chavão, será a democracia a funcionar. Um Governo pode e deve ser avaliado regularmente, mas só deve verdadeiramente ser julgado no final da legislatura. E, para isso, tem de cumpri-la.

O BOM IMIGRANTE E A FÚRIA DA MULHER NEGRA

Fevereiro 19, 2023

J.J. Faria Santos

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Há alturas em que os astros se alinham e todo o lixo cósmico se parece reunir num aterro na atmosfera politico-mediática. Em poucos dias, um emigrante foi selvaticamente agredido; Montenegro descobriu a nossa vocação para “arriscar procurar pelo mundo as comunidades que se possam integrar melhor na nossa cultura”; Moedas defendeu a definição de contingentes para a imigração;  um juiz superstar foi anunciado como testemunha abonatória de um agente policial (Carlos Canha) acusado pelo Ministério Público e pela juíza de instrução criminal de crimes de injúria agravada, de ofensa à integridade física qualificada, sequestro agravado e abuso de poder; e a vítima, Cláudia Simões, contra a qual foram inicialmente arquivadas as acusações, acaba, graças ao Tribunal da Relação, por ter de responder pelo crime de ofensa à integridade física qualificada de Canha. E para terminar em tom de comédia, dado o “cadastro” político do indivíduo, nada como André Ventura declarar, enfático, que “aqueles que defendem a expulsão de imigrantes por serem imigrantes nunca terão lugar no Chega”.

 

Logo que Marcelo, que considerou as declarações de Moedas “um erro” e as de Montenegro “imprudentes”, veio a público assinalar que “a cópia perde sempre para o original”, o líder do PSD declarou peremptóriamente que as palavras não se dirigiam a si (alardeando os seus “valores morais, éticos e humanos”). Já o edil lisboeta, naquele seu estilo empertigado, em que a arrogância se mistura com a prosaica falta de noção, anunciou à cidade e ao mundo: “Eu fui imigrante, sou casado com uma emigrante, o meu sogro é marroquino, a minha sogra é tunisina, por isso, não aceito lições de ninguém nesta matéria, de ninguém.” Peguem nesta letra, arranjem um compositor e temos um hit de música pimba.

 

Se Montenegro dança com a xenofobia enquanto puxa da retórica para falar de humanidade e moral, o nosso sistema judicial parece necessitar de apoio para distinguir o agressor da vítima, a fúria gratuita da legítima defesa, a utilização desajustada e grosseira da violência e o uso justificado, adequado e proporcional da força por parte de um agente da autoridade. No caso em apreço, os indícios apontam para uma utilização brutal da violência por parte do agente, acompanhada pelo uso de expressões flagrantemente racistas e atentatórias da dignidade pessoal de Cláudia Simões. Para sossegar certas consciências, recorre-se ao estereótipo e joga-se a cartada da angry black woman. Ao ter empurrado Carlos Canha e ter resistido à detenção, Cláudia Simões sofreu o respectivo correctivo. O relatório médico do Hospital Amadora-Sintra, tal como foi citado pelo Expresso, descreve um “traumatismo cranioencefálico frontal e trauma facial com edema exacerbado generalizado, edema dos lábios, com feridas dispersas, trauma da pirâmide nasal (...). Apresenta face deformada por hematomas extensos em toda a face, principalmente na região frontal à esquerda, ferida traumática no lábio inferior e superior com pequena hemorragia ativa”. A fúria da mulher negra foi de tal magnitude que um agente experiente com formação em artes marciais só a conseguiu verdadeiramente subjugar quando a deixou traumatizada, ferida, deformada e inanimada.

 

Imagem: Rui Gaudêncio (publico.pt)

MADONNA PERDEU A FACE?

Fevereiro 12, 2023

J.J. Faria Santos

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A mulher das mil caras terá perdido a face, dizem. A mãe de todas as reinvenções, da reciclagem dos looks clássicos de Hollywood ao vanguardismo com um toque trash, é agora acusada de se descaracterizar numa manobra ousada para enganar o espelho do tempo. Luís Osório escreveu que “numa das últimas madrugadas o mundo soube que não mais verá Madonna”.

 

Claro que o “problema” não é apenas a imagem; é o petulante e insolente hábito de dizer o que pensa e a recusa em adoptar um estilo de vida visto como apropriado para a sua idade e o seu estatuto. Como se uma provocadora especializada em esticar os limites do interdito se acomodasse aos estereótipos da alta burguesia, e se remetesse a fugazes aparições de prestígio em talk shows e se refugiasse no museu de uma carreira de sucesso. Para quem, como Madonna, a memória e o passado são detonadores do processo criativo, isto seria impensável.

 

“Poor is the man whose pleasures depend on the permission of another”, declamava ela em Justify my Love, um exercício de spoken word em colaboração com Lenny Kravitz, que pode ser visto como um mote para a carreira e para o seu projecto de vida. Esta radical independência, esta afirmação do prazer despojado de pecado, tanto se manifesta na ousadia dos temas e na encenação da sua música como na predilecção por namorados décadas mais novos ou na redefinição das linhas do seu rosto ou ainda na reformatação do seu corpo. Em reacção aos comentários adversos em relação à sua aparição na cerimónia dos Grammys, Madonna reagiu aludindo ao “idadismo” e à “misoginia”. E rematou: “Nunca pedi desculpa pela minha aparência e não é agora que vou começar.” 

 

Podemos sempre admitir que ao contrário do que aconteceu até há pouco tempo na sua carreira, em que ela recorreu a imagens reconhecíveis do passado para entre o pastiche e a recriação actualizar modelos de glamour, Madonna tenha agora optado por se aproximar de uma sensibilidade do futuro que transcende o humano. O que pode explicar que muitas pessoas vejam no formato do seu rosto em publicações no Instagram, seja por efeito de intervenções estéticas, maquilhagem ou utilização de filtros, uma qualidade alienígena.

 

O que importa é que Madonna se reconheça no rosto que oferece ao mundo. E que a diferença não se transforme em estranheza, ainda para mais em relação a quem, como ela, sempre fez a apologia da diversidade e da inclusão. Aproximação à estética ciborgue, arremedo de body art ou simples batalha necessariamente inglória contra o passar do tempo, é Madonna, como sempre, que comanda a performance, e o espectáculo, como sabemos, tem de continuar. E não falta quem pague para ver.

 

Imagem: Luigi & Iango (Vanity Fair - The Icon Issue)

O BANQUEIRO MORALISTA E O JANTAR DE SEXTA-FEIRA À NOITE

Fevereiro 05, 2023

J.J. Faria Santos

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Portugal num parágrafo segundo o presidente do Santander: “demonizamos” quem tem bons salários ou lucros; a “revolução já lá vai”; entre o que a DECO diz e a realidade há uma “enorme assimetria”, porque o aumento das prestações do crédito à habitação só afecta as classes média e média alta, que podem passar por dificuldades, “mas não passam fome”; e assistimos a “padrões de consumo elevados”, com as pessoas a “jantarem fora à sexta-feira à noite”, graças às políticas públicas que distribuem subsídios que têm impacto no aumento da inflação.

 

Se nos debruçamos sobre a neurociência da pobreza, talvez seja altura de nos dedicarmos ao estudo da pobreza de espírito das proclamações dos afluentes que peroram sobre os destituídos ou os menos abastados. Para além de fazerem retratos a traço bastante grosso da conjuntura económica e de alinhavarem considerandos acerca da psique da nação, não resistem a teorizar acerca da nossa capacidade de resistência (“ai, aguentam, aguentam!”) e, sobretudo acerca das nossas refeições, ora limitando o menu (não podemos comer bife todos os dias) ora censurando a opção de recorrer ao restaurante.

 

Há, evidentemente, neste estilo de considerações um paternalismo e uma desfaçatez ofensiva e revoltante. Como se do alto dos seus cargos, e das suas supostas impressionantes qualificações, e apesar de “a revolução” já ser passado, eles assumissem o cargo de grandes educadores do povo. Os banqueiros são uma casta privilegiada e a banca um sector à parte, cujo ás de trunfo é a conveniente invocação do misterioso risco sistémico. Talvez por isso, num país em que a média da zona euro é o benchmark, ninguém se incomode com o facto da remuneração dos depósitos a prazo em Portugal ter sido a mais baixa dos 19 países que compunham a zona euro em 2022. A taxa média em Dezembro, segundo dados do jornal Público, foi de “0,35%, muito longe dos 2,29% da França, dos 2,09 % da Itália, ou mesmo da média de 1,44% da zona euro”.

 

Sexta-feira é, curiosamente, o título de um tema de Boss AC, onde se canta: "Não tenho condições nem p’a alugar uma tenda / Os bancos só emprestam a quem não precisa   / A mim nem me emprestam p’a mudar de camisa / Vou jogar Euromilhões a ver se acaba o enguiço / Hoje é sexta-feira, vou já tratar disso.”  Não se recomenda. Lá viria o ilustre banqueiro perorar contra o vício do jogo, alimentado pelo subsídio, quiçá. E como quem não tem dinheiro não tem vícios, a solução seria apertar mais o crédito, o qual, na linguagem horeca de Pedro Castro e Almeida, não pode ser uma espécie de “bar aberto”. Devidamente contextualizada, esta afirmação é a versão relativamente sofisticada do conselho da senhora piedosa que dá a esmola ao pobre e recomenda que não gaste o dinheiro em álcool. Porque, como se sabe, para os bem instalados na vida, a miséria é, sobretudo, moral.

 

Entretanto, a história foi reescrita. O banqueiro estará, segundo o Polígrafo, a ser vítima da “manipulação clara” do seu discurso. Ter-se-á referido à classe média e média alta e sido vítima da fúria cega das redes sociais e do oportunismo político. Mas não tem Portugal uma classe média empobrecida, com o poder de compra em erosão? E o acto de jantar fora à sexta-feira à noite é um indicador de robustez financeiro? E um banqueiro de perfil liberal devia tecer considerações levianas acerca da forma como um cidadão gere o seu orçamento familiar, sem conhecer todas as circunstâncias do seu estilo de vida?

 

Imagem: Tiago Miranda (expresso.pt)

AI, CHEGA, CHEGA, CHEGA, CHEGA O MEU SOUNDBITE!

Janeiro 29, 2023

J.J. Faria Santos

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André Ventura, a fazer fé da descrição do Diário de Notícias, garante que “"há um único partido que lidera a oposição, que eleva os 'soundbites'" no parlamento, "que se irrita e se enerva, como todos os seres humanos, porque sofre" as "dores que os portugueses estão a sofrer em casa". Talvez seja esta mistura de megalomania, superficialidade e empatia esforçada e/ou parasitária que explica o comportamento de carroceiro que o grupo parlamentar do seu partido exibe no Parlamento.

 

Como bem descreve a jornalista Bárbara Reis em artigo do Público de ontem, os deputados do Chega viram-se envolvidos em vários casos de violência, física e verbal, que incluíram ameaças, empurrões, cabeças encostadas e agressões físicas, ocorridos nos corredores ou em gabinetes da AR. Já no plenário, o comportamento inclui apartes ruidosos, gargalhadas, tiradas ofensivas e gesticulação ostensiva num desrespeito atroz pelos restantes deputados e pelo Parlamento. Bárbara Reis citou Carlos Guimarães Pinto, parlamentar da IL, que afirmou: “Não falam para o lado num tom de voz normal. Gritam.” O que talvez permita concluir que a asserção do primeiro-ministro com referência aos “queques que guincham” errou o alvo; são os “cheganos” que guincham.

 

Não deixa de ser curioso que um partido que, no que diz respeito às forças de segurança, defende uma política que  promova “uma cultura cívica do respeito pela instituição e seus agentes” se comporte na AR como uma associação de arruaceiros. Aliás, o Partido Chega é uma espécie de organização fora-da-lei, cujos estatutos, segundo o Tribunal Constitucional, demonstram “problemas de transparência”, “restrição à livre expressão” e uma “significativa concentração de poderes” no seu líder.

 

O Chega adoptou a firma André Ventura Unipessoal, limitada na clareza, consistência e coerência das suas propostas e ilimitada nas suas ambições. O grande líder clareia a voz, alarga os gestos, estica o pescoço, saca de recortes de jornais, torce a estatística, carrega na demagogia e solta os soundbites, que se “elevam” no Parlamento como se fossem palavras do Deus, por amor a quem, em tempos idos ele se mortificava, usando “materiais religiosos de castigo, como o cilício”. André Ventura é tudo e nada ao sabor das conveniências, com princípios maleáveis e convicções descartáveis. Jorge Castela, colega de faculdade que Ventura contactou com a ideia inicial de “formar um partido próximo do 5 Estrelas italiano”, descreveu-o nestes termos ao Expresso, em Março de 2021: “O André não é racista, fascista, homofóbico ou xenófobo, é um político inteligente, que sabe fazer a leitura das discussões de café. Ele é um surfista. Cavalga a onda que é importante para conseguir captar eleitorado. Não interessa o quê.” Um dia destes, ao executar manobras como o floater ou o aéreo, pode ser que o surfista acabe engolido pela onda.

E SE O CÃO DE GUARDA SE TRANSFORMA NUM CÃO DE ATAQUE?

Janeiro 21, 2023

J.J. Faria Santos

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“Espero bem que, quer os protagonistas políticos, quer os órgãos de comunicação social continuem a pugnar pela preservação [da presunção da inocência], porque, caso contrário, temos em crise todo o nosso regime”, respondeu o assertivo político entrevistado pelo Público. E, mais adiante, confrontado com acusações que não redundam em condenações, teorizou: “Há uma chuva de denúncias anónimas sobre políticos. É uma forma de recreio de algumas pessoas. É obrigação do Ministério Público promover a investigação. Só que às vezes criam um dano de imagem que é quase irrecuperável.”

 

Poder-se-ia supor que, atendendo à conjuntura política actual, estes considerandos partiriam de um dirigente do PS. Não é o caso. Hugo Soares, secretário-geral do PSD, emitiu estas opiniões na mesma entrevista em que defendeu que “anda toda a gente atrás do PSD e de um deputado que nem foi constituído arguido”, e garantiu que nada nos “ajustes directos no exercício da profissão de advogado de Luís Montenegro o diminui, nem ética, nem jurídica, nem politicamente”.

 

Se o Governo se viu assolado por uma série inédita de demissões, e pelo questionamento da legalidade ou do acerto político de nomeações e decisões, também é líquido que no maior partido de oposição diversas peças se parecem mover no cerco a Montenegro. O que explica a reacção acossada de Hugo Soares e declarações de outros dirigentes do partido, que parecem não perceber que, para o bem e para o mal, as circunstâncias que envolveram a contratação de Joaquim Morão pela Câmara de Lisboa não são diferentes das que rodearam os ajustes directos obtidos pela sociedade Sousa Pinheiro & Montenegro, nomeadamente com a Câmara de Espinho. É provável ou possível, que, quer num caso quer noutro, a legalidade não tenha sido ferida, mas há implicações éticas e de mérito que podem ser equacionadas, mesmo que se defenda que um correligionário político, na posse de qualificações e experiência, não possa por isso ser discriminado.

 

Thomas Jefferson disse que “se tivesse de escolher entre governo sem jornais e jornais sem governo, não hesitaria em escolher esta última”. O jornalista enquanto public watchdog da verdade e da transparência é essencial para a integridade da democracia, mas o que sucede quando o watchdog se transmuta num attack dog? Nos últimos tempos tem sido penoso, entre nós, assistir à deriva tablóide dos espaços de informação, com pivôs consagrados a alinhar na exploração sensacionalista de “casos”, sacrificando o rigor dos factos e o enquadramento sóbrio à sôfrega disputa do share, e líderes de opinião e comentadores a cavalgarem despudoradamente o “ar do tempo”, reagindo em tempo real sem ponderação nem distanciamento, apostando no julgamento instantâneo.

 

É aliás sintomático que as duas assinaturas televisivas de comentário alargado, em sinal aberto, tenham sido atribuídas a políticos profissionais em pousio, Paulo Portas e Marques Mendes, de filiação partidária inequívoca na margem direita. O primeiro tem um historial de colocar um jornal (O Independente) ao serviço da sua estratégia política pessoal e o segundo foi repetidamente associado a manipulação de alinhamentos de telejornais quando exercia um cargo governamental. Não sei se o que os recomenda para o exercício desta tarefa é este seu historial, se a sua cor política, se a sua queda para o infotainment com gestos histriónicos (Mendes) ou o perpétuo ar de gravitas (Portas). Putativos candidatos à Presidência da República a servirem ao povo um digest informativo com um filtro ideológico e motivações dúbias.

 

Na coligação informal e heterodoxa entre a comunicação social e o Ministério Público, o veredicto é sempre a condenação: se a implicação não é legal é ética, e se não é ética é política. Se o cão de guarda, aliciado por guloseimas, vira cão de ataque, podemos confiar nele para ajudar a preservar a democracia?

 

Foto: Josh Plueger (wikimedia commons)

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