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NO VAGAR DA PENUMBRA

NO VAGAR DA PENUMBRA

PODE ALGUÉM NÃO SER QUEM É?

Novembro 02, 2025

J.J. Faria Santos

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O candidato presidencial é militante de um partido há mais de 45anos. Nele, e em nome dele, exerceu toda uma diversidade de cargos: líder da juventude partidária, membro do Secretariado Nacional, deputado, líder parlamentar, eurodeputado, secretário-geral, secretário de Estado e ministro. Mário Soares e António Guterres “deram sentido” à sua “acção política com uma visão humanista centrada nas pessoas”. “Liberdade, igualdade, solidariedade” são valores que defende. Pugna por um “progresso económico de mãos dadas com a justiça social”. Quer “proteger o Estado Social e reduzir drasticamente a pobreza”. Diz que “aprendeu a importância da escola pública, do serviço nacional de saúde e da segurança social”. Deplora o “agravamento do fosso social. Poucos e cada vez mais ricos. Do outro lado, quase todos, pobres, remediados e uma classe média a ser esmagada”. Na sua primeira declaração após ter sido eleito secretário-geral do seu partido, o agora candidato presidencial afirmou que a sua oposição ao governo de então seria feita “em nome da defesa dos valores de esquerda democrática”. Apesar de tudo isto, o candidato recusa-se, hoje, aqui e agora, a declarar-se de esquerda. Porque considera as categorias esquerda/direita obsoletas ou redutoras? Não. Porque não quer ser arrumado em “gavetas”.

 

António José Seguro diz que quer “unir os portugueses”, e que se dirige a “todos os portugueses, sejam eles de esquerda, de direita, de centro”. Desafiado a definir-se como “laico, republicano e socialista”, como uma das pessoas que deu “sentido à sua acção política”, disse-se “republicano, progressista e humanista”. “Socialista” e “esquerda” são, agora, palavras tóxicas no léxico do candidato. Precisamente porque se trata de uma “candidatura presidencial”. Mas não será natural que um candidato se apresente com todo um lastro de intervenção cívica e de convicções ideológicas que nortearam a sua acção política e que, a partir daí, construa uma proposta que tenha capacidade agregadora de perspectivas diversas que reconheçam nele qualidades para o cargo a que concorre? Seguro diz agora que “as etiquetas dividem as pessoas”. E advoga “uma nova cultura política, baseada no diálogo e no compromisso”. Já assim pensava quando foi eleito secretário-geral do seu partido, mas nessa altura não considerava que as “etiquetas” fossem um problema, afirmando textualmente: “O país necessita de compromissos e de convergências, sem nunca colocar em causa as ideologias de cada um.”   

 

O candidato que percorreu todos os patamares da vida partidária, de militante de base a ministro, afirma “não vir da política tradicional”, no que pode também ser entendido como uma tirada incongruente e populista. António José Seguro, na apresentação da sua candidatura, afirmou solenemente: “Assumo por inteiro e com orgulho o meu percurso e todo o meu passado.” O que torna mais insólito o estatuto de candidato que não ousa dizer a sua inclinação política. Como quem está preso pelas amarras da “partidofobia” ou da “esquerdofobia”.

CASA DOS SEGREDOS: EDIÇÃO PALÁCIO DE BELÉM

Outubro 26, 2025

J.J. Faria Santos

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André V. é o candidato multiusos. Líder de um partido unipessoal, é um patriota fervoroso e um católico conservador. Embora com um perfil interventivo e conflituoso, fisicamente não corresponde ao estereótipo do tipo musculoso e tatuado. Espera-se que seja bom nas “dinâmicas” e “dê muito canal”. Aguarda-se com expectativa a possibilidade de instituir na casa a prática de rezar o terço. A produção já acedeu ao pedido dele de que negociassem com a Shein a produção de vestuário e acessórios que correspondam ao conceito de cilício. Trata-se de um candidato com reais possibilidades de ser finalista, dada a sua poderosa retórica e o desassombro com que interpela os outros concorrentes. O facto de para ele a verdade ser um país estrangeiro pode constituir um obstáculo.

O seu segredo é: a Dina queixa-se que eu gosto mais do António e do Santiago do que dela.

 

Luís M. tem a seu favor os anos de exposição mediática a explicar aos portugueses a intrincada substância da política. Se pode beneficiar da familiaridade, também pode ser prejudicado pelo ricochete de uma actividade que, para ser bem-sucedida, não pode prescindir de alfinetadas que deixam marcas nas peles mais sensíveis. Ser um concorrente na linha da magistratura dos afectos, pode acabar por ser nocivo. É que os espectadores estão algo agastados por um perfil de afectuosidade especializado em facadas nas costas, e podem julgar Luís M. por este padrão. Comunicativo, com envergadura que lhe permite jogo de cintura e com ligações a um poder tendencialmente hegemónico, trata-se de um concorrente que brilhará na cozinha, misturando ingredientes e recriando receitas, ao mesmo tempo que confeccionará pratos e controlará a dieta de André V., de forma a impedir que o refluxo gástrico o impulsione para a vitória.

O seu segredo é: gosto que a minha mulher me dê de comer na boca.

 

Henrique M., o favorito do público, é, nesta edição, o mais recente representante da linhagem dos militares, ilustres porta-estandartes de um código de ética e de conduta. Alto como o céu e de olhos azuis como o mar, é visto como alguém que organizou exemplarmente os serviços de vacinação e, quiçá, terá até repelido a pandemia. Disciplinado e disciplinador, não tolerará camas desfeitas, roupas pelo chão ou concorrentes a desfilar pelo palácio sem aprumo ou de boxers. Espera-se um confronto com André V. (embora amenizado por cavaqueiras no confessionário) e com um Luís M. demasiado disponível para o improviso, o que choca com o seu rigor de planificador. Inicialmente emparedado entre o “socialismo e a social-democracia”, conseguiu, qual Houdini, evadir-se. Irritou André V. quando afirmou que “passados 10 anos um imigrante é tão português como nós”, o que, outrossim, foi interpretado em certos círculos como uma “porta escancarada” para os estrangeiros que querem ser “portugueses de raça”.

O seu segredo é: adoro malhar nos negacionistas e estar no Cockpit com o Nuno Melo.

 

Tozé S. entrou na casa com pezinhos de lã, carregado de chá e simpatia. Diz-se livre e independente. Diz que sabe ouvir, unir, decidir e agir. Se André V. disse que o país precisa de “três Salazares” para ser posto na “ordem”, Tozé S. replicou que Portugal “não precisa de ditadores”. Cordato e sensível, na opinião de um destacado fã do programa (Miguel Sousa Tavares) “desperta em nós um entusiasmo equivalente a uma Quarta-Feira de Cinzas”, e “fala como se estivesse programado pela inteligência artificial”. Pode ser visto como uma “planta”, gíria de reality show para concorrentes amorfos, mas não se deve desvalorizar o seu potencial de underdog junto dos espectadores, que costumam ser generosos com os concorrentes humildes e transbordantes de bondade. Com arrojo, o Kennedy de Penamacor declarou: “Não pergunto às pessoas de onde é que vêm, pergunto para onde querem ir”, arriscando que os telespectadores decidam o televoto com base na premissa de José Régio: “Não sei para onde vou / -Sei que não vou por aí!”.

O seu segredo é: no dia 25 de Abril de 1980 esquivei-me a ajudar uma velhinha a atravessar a rua.

 

Imagem: pormenor de ilustração de Helder Oliveira para a Revista do Expresso

O NACIONALISTA, O CONTROLADOR DA COMUNICAÇÃO SOCIAL E O CANDIDATO DO AMOR

Outubro 19, 2025

J.J. Faria Santos

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Pedro Passos Coelho vê as pessoas “inseguras, ameaçadas, de certa maneira desorientadas, desconfiadas”, em risco de se sentirem “estrangeiras na sua própria terra”. A culpa é do milhão e meio de imigrantes. Passos Coelho, como economista e como ex-governante, deveria sugerir às pessoas que reflectissem melhor. Considerando o peso dos imigrantes no sector social, tratando de idosos e doentes, restrições desadequadas à sua entrada no território nacional evidenciará outro risco mais realista: o do abandono à sua sorte dos dependentes dos cuidados de terceiros. Por outro lado, considerando os desafios da demografia, um garrote demasiado apertado aos fluxos de imigração compromete a sustentabilidade da Segurança Social e das contas públicas. O estudo "Os Custos de Construir Muros: Imigração e o Fardo Orçamental do Envelhecimento na Europa" conclui que a proibição da entrada de imigrantes em Portugal “obrigaria a um aumento da carga fiscal em 7,9% para garantir a sustentabilidade das contas públicas”.

 

Hugo Soares, indignado com as notícias sobre o caso Spinumviva, foi ao canal público pedir mais “escrutínio” às notícias e mais “sentido crítico” aos portugueses. Pelo meio, sugeriu que as fontes das notícias podem ser “inventadas” e queixou-se de “uma notícia plantada”. Aparentemente, ao PSD já não basta a hegemonia eleitoral e a preponderância do “aparelho comunicacional da direita” (expressão de Pacheco Pereira). Nem sequer a anunciada criação de uma central de comunicação e o reforço da “equipa para gerir redes sociais”. Seguindo o padrão do amigo primeiro-ministro, também Soares tem uma ideia do que é o jornalismo “puro”. Noutros tempos, uma tomada de posição deste teor daria origem a clamores de “claustrofobia democrática” e a denúncias do apetite pelo controlo dos meios de comunicação social, quiçá até, se me permitem a pequena provocação, à imputação de atentado contra o Estado de direito. Quem não se ficou foi o editor de Sociedade da CNN Portugal, que fechou o seu artigo intitulado “Será Hugo Soares um traficante de influências?” com uma valente canelada: “Não somos nós amigos do procurador-geral para que ele nos confidencie, por absurdo, o que pensa fazer.”

 

António José Seguro é o candidato do amor. Isto já vai para além da moderação, do diálogo como método, da construção de consensos, da resolução pacífica dos problemas, do humanismo. “O nosso país precisa de amor”, enfatiza, como se sintetizasse um programa político. Dado que para espalhar a boa nova, precisa de ser eleito, o candidato jantou com “dezenas de influentes personalidades da direita” e saiu do repasto com o apoio dos “passistas”. Que isto possa reforçar o seu estatuto de candidato independente, é admissível. Já que se possa compaginar com o seu perfil de moderação, é que é mais difícil de crer. De qualquer forma, como isto está tudo ligado, é bem possível que com muito amor as pessoas já não se sintam estrangeiras na sua própria terra.

 

AS ACTIVIDADES (EFECTIVAS E POTENCIAIS) DA SPINUMVIVA

Outubro 12, 2025

J.J. Faria Santos

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O produto potencial, citando o glossário do site do Conselho das Finanças Públicas (CFP), “representa o valor de equilíbrio teórico da economia, ou seja, o máximo de produção que a economia consegue realizar de forma sustentável no longo-prazo, assumindo uma utilização eficiente dos seus recursos produtivos (trabalho e capital)”. O CFP faz questão de notar que se trata de um “conceito teórico, não observável”. As actividades da Spinumviva não serão teóricas, embora não sejam muito observáveis. Mas, em teoria, o que poderá fazer a Spinumviva? Aproveitando o dia da reflexão prévio ao do exercício do direito de voto, e recorrendo a fontes abertas, fiz uma averiguação exploratória.

 

A Spinumviva tem uma actividade principal e cinco secundárias. A empresa dedicar-se-á sobretudo a “actividades de consultoria para os negócios e outra consultoria para a gestão” (CAE 70200). As notas explicativas da CAE-Rev.4 esclarecem que isto “compreende as atividades de consultoria, orientação e assistência operacional às empresas ou a organismos (inclui públicos) em matérias muito diversas,  tais como: planeamento, organização, controlo, informação e gestão”. A Spinumviva está também habilitada, por exemplo, a orientar as empresas em relação aos “procedimentos de contratação pública”, bem como a congeminar “estratégias de compensação pela cessação de vínculo laboral” (vulgo: como se ver livre do seu “colaborador” pagando o menos possível).

 

A vocação desta sociedade por quotas para a consultoria é tão premente e abrangente que se deve ter sentido limitada apesar destas “matérias muito diversas”. Daí a actividade secundária 74 992 – “Outras atividades de consultoria, científicas, técnicas e similares, diversas, n.e., excepto agentes de profissionais desportivos”, que compreende uma tal variedade de serviços que vão da “verificação contabilística de documentos” à “previsão das condições atmosféricas”, passando pela “consultoria para ambiente (incluindo estudos de impacto ambiental)”.

 

Uma outra vertente da Spinumviva prende-se com as actividades imobiliárias, estando habilitada para a ”compra e venda de bens imobiliários” (CAE 68110), o que inclui a possibilidade de fazer a “subdivisão de terrenos em lotes sem introdução de melhoramentos”, mas não a de desenvolver “projetos de construção (promoção imobiliária) para venda”. O outro CAE secundário que a empresa tem nesta área (68200) dá-lhe a possibilidade do “arrendamento e exploração de bens imobiliários próprios ou em locação”, que inclui “o desenvolvimento de projetos de edifícios para exploração própria, isto é, para arrendamento de espaço nesses edifícios” e também “o aluguer de telhados, por exemplo, para instalações de energia solar e antenas de telecomunicações”. Desconheço se será permitido à empresa o aluguer do rooftop da sua sede para sunset parties ou mesmo, eventualmente, rendibilizar a abundância de casas de banho.

 

Se é verdade que Luís Montenegro, mentor da Spinumviva, demonstra um interesse algo lúdico mas bastante vincado pela comunicação social, é possível que uma das suas verdadeiras paixões seja a viticultura. Será por esse motivo que a empresa poderá promover a “cultura de uvas de mesa e para vinho, sumo ou para fruto seco” (CAE 01210). Mas se ficasse por aqui, não poderia dedicar-se à produção de vinho, o que, convenhamos, seria revoltante e mesmo uma pouca-vergonha. Solução? Atingir a meia dúzia de actividades, acrescentando a “produção de vinhos comuns e licorosos” (CAE 11021). É certo que não pode produzir saquê ou kefir, mas também quem é que defende a invasão descontrolada das garrafeiras nacionais por parte de bebidas estrangeiras, que vêm poluir o nosso palato e invadir as nossas gargantas?

O ENGENHEIRO DO CAOS DA VERDADE

Outubro 05, 2025

J.J. Faria Santos

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O artigo do jornalista Marco Alves, intitulado “Como Carlos Moedas se apropriou da obra dos outros”, veio colocar definitivamente o autarca lisboeta na condição de vice-líder da tabela dos competidores pelo troféu de campeão dos “factos alternativos”. O líder, com bastante folga, é, obviamente, André Ventura. Se neste contexto os objectivos são semelhantes (obscurecer os factos e substituí-los por outros, visando o engrandecimento pessoal e obter dividendos políticos), os estilos são substancialmente diferentes. Sendo comum aos dois uma megalomania alimentada pela sensação de predestinação e uma relação intermitente com a verdade, o facto é que enquanto Ventura escolhe uma retórica torrencial formulada num tom tonitruante, desafiador e definitivo, Moedas recorre a um tom funesto, como se carregasse o peso do mundo e essa carga lhe tivesse sido consignada por uma oposição empenhada em negar o inquestionável fruto do seu labor.

 

Não se trata aqui de valorizar em excesso o habitual recurso que o discurso político faz a proclamações ambíguas, ou com formulações que prescindem da clareza e do rigor inatacável, para que seja possível o recuo ou a alegação de erro de interpretação. A recorrência e o acumular de episódios, que remontam pelo menos a 2021 (altura em que o então candidato Moedas anunciou, falsamente, a um país estupefacto que em 2019 tinham morrido, em Lisboa, “26 pessoas nas ciclovias”), correspondem a um padrão de desrespeito pela verdade ou de ligeireza de considerações que explicitam um compromisso fundamental com a propaganda. Ainda recentemente, na sequência do acidente no elevador da Glória, o edil lisboeta afirmou, erradamente, que Jorge Coelho se demitira na altura da queda de Entre-os-Rios por ter conhecimento da fragilidade da ponte, o que causou vivo repúdio em diversos quadrantes ideológicos e levou o jornalista Eduardo Dâmaso, no Correio da Manhã, insuspeito de simpatias socialistas, a escrever que Moedas “mentiu com os dentes todos”, classificando as declarações deste como “uma obscena ofensa à memória de pessoa falecida” e a prova  de  “uma completa ausência de carácter”.

 

Em Setembro do ano passado, em plena Assembleia Municipal, a deputada do BE Maria Escaja acusou Carlos Moedas de mentir ao responsabilizar o anterior executivo pela instalação de painéis publicitários de grande dimensão na cidade quando, objectivamente, o contrato com a empresa JCDecaux tinha sido assinado no mandato dele. Ofendido, o presidente da câmara abandonou a sala, depois de ter dito: “Chamou-me mentiroso e vou-me retirar da sala enquanto estiver o BE a falar.” Moedas não se vai “retirar” da campanha e a probabilidade de as falsidades e as incorreções no seu comportamento e discurso influenciarem as escolhas dos eleitores é baixa. Estamos na era da pós-verdade em que a crença e a emoção prevalecem sobre a realidade objectiva. E como escreveu Michiko Kakutani em A Morte da Verdade (Editorial Presença): “sem factos aceites de comum acordo (.), não pode existir um debate sobre políticas, nem um meio eficaz de avaliar candidatos para o desempenho de cargos políticos, nem uma forma de responsabilizar os representantes eleitos perante o povo. Sem a verdade, a democracia claudica.”

RESERVA OU OPACIDADE?

Setembro 28, 2025

J.J. Faria Santos

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Poderia tratar-se do comportamento de uma pessoa reservada, subitamente atordoada pelo escrutínio inerente a um alto cargo público. Só que se trata de um político de carreira que no exercício do cargo de presidente do seu partido, e depois enquanto primeiro-ministro, se tem destacado pela ambiguidade das proclamações, quer seja no âmbito de anúncios de medidas a executar no âmbito da sua acção, quer seja na construção de parcerias parlamentares que as viabilizem, quer ainda na abordagem que faz às circunstâncias políticas e judiciais do caso Spinumviva.

 

Para quem proclamou com soberba “só respondo a quem for tão transparente como eu”, as explicações arrancadas a ferros sucessivamente alvo de esclarecimentos adicionais e reinterpretações criam um problema de confiabilidade. É o caso do episódio da empresa criada para gerir uns terrenos familiares quando afinal o grosso da actividade era a consultoria,  bem como o esquecimento e depois a demora em declarar a empresa e a lista de clientes. Por outro lado, protagonizou o gesto mediático de exibir um dossier com “todas as facturas” e restantes documentos relacionados com a obra da sua casa em Espinho, declarando enfaticamente que seria “disponibilizado às autoridades”, se elas o solicitassem, para depois, quando a Polícia Judiciária do Porto quis aproveitar essa disponibilidade, sugerir à PJ que pedisse os elementos à AT e à Câmara Municipal de Espinho. Já no seu relacionamento com a Entidade para a Transparência, no mesmo dia Montenegro começou por desmentir que tivesse pedido que as matrizes dos seus imóveis não fossem divulgadas para mais tarde confirmar o pedido apenas em relação a “seis imóveis urbanos”.

 

Esta ambiguidade e avareza nas explicações manifestou-se na actividade política, por exemplo, no episódio no desagravamento do IRS para 2024 de 1500 milhões de euros que afinal já incluíam os 1327 milhões do Orçamento do Estado elaborado pelo governo anterior. E também numa questão fundamental para a sobrevivência do regime – o relacionamento com a direita radical. O célebre “não é não” para um “acordo político de governação” é um claro que sim para acordos pontuais para fazer avançar legislação no Parlamento e para a mimetização da agenda do Chega.   

 

A aversão epidérmica ao escrutínio e a opção deliberada pela divulgação de informação truncada, seleccionada ou envolta numa película espessa de propaganda espelha o desprezo que Montenegro (como Cavaco) nutre pela comunicação social. O que o levou a perorar acerca do jornalismo “puro”, de auriculares e telemóveis, e de como deve ser feita a “cobertura de um evento ou acontecimento”. Daí a sua preferência por declarações sem direito a perguntas. Porque, citando Montenegro, um jornalista ao fazer uma pergunta pode “já estar a criar a atmosfera para depois aproveitar a desforra”. Ainda não acusou, como André Ventura fez, os jornalistas de serem “inimigos do povo”, mas deve pensar que são inimigos do Governo. Com a excepção, porventura, de jornalistas do Observador a quem se pode confiar um acervo significativo de documentos da Spinumviva.

AUTOCRACIA AMERICANA

Setembro 21, 2025

J.J. Faria Santos

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Seria irónico, se não fosse alarmante a dissonância entre o propósito alardeado e a prática anterior e posterior, que Donald Trump tivesse assinado no primeiro dia do seu segundo mandato um decreto intitulado “Restaurar a liberdade de expressão e terminar com a censura federal”. Nele recordou que a Primeira Emenda da Constituição garantia aos americanos o direito de  “falar livremente na praça pública sem a interferência do Governo”, ao mesmo tempo que defendia que nos “nos últimos quatro anos, a anterior administração atropelou o direito à liberdade de expressão ao censurar o discurso dos americanos nas plataformas online”. Argumentando que a censura é “intolerável numa sociedade livre”, propôs-se assegurar que “nenhum funcionário, empregado ou agente federal se envolvia ou facilitava qualquer conduta que cerceasse de forma inconstitucional a liberdade de expressão de qualquer cidadão americano”.

 

O que se esboçara no primeiro mandato acentuou-se para lá da caricatura, ameaçando as fundações da democracia americana e o etos inerente ao sonho americano de liberdade e prosperidade, com repercussões na ordem mundial e no direito internacional. O que levou o V-Dem, no seu Relatório da Democracia 2025, a aludir ao “episódio de autocratização mais rápido que os EUA viveram na história moderna”. “A expansão do poder executivo, o enfraquecimento do poder fiscal do Congresso, as ofensivas contra as instituições independentes e contra os meios de comunicação social, bem como a eliminação e o desmantelamento das instituições do Estado – estratégias clássicas dos autocratizadores – parecem estar em acção”, prossegue o V-Dem numa caixa justamente intitulada “EUA – Formação de um colapso democrático?”, em que o ponto de interrogação exprime mais incredulidade que surpresa e, porventura, um módico de esperança nos pesos e contrapesos dos poderes do Estado.

 

O cancelamento do programa de Jimmy Kimmel é apenas mais um episódio de ataque à liberdade dos meios de comunicação social, onde pontuam pontas de lança como o presidente da Comissão Federal de Comunicações ou os próprios Donald Trump e J. D. Vance. Aparentemente vale tudo: ataques personalizados a apresentadores, jornalistas e colunistas, ameaças de cancelamento de licenças, o condicionamento mais ou menos subtil de negócios pendentes, apelos a despedimentos e à denúncia pública de comportamentos. Como escreveu David Remnick, editor da New Yorker, a Primeira Emenda vai ser submetida a um teste sem precedentes. E acrescentou: “O Presidente está a tentar carregar na tecla Mute para a sátira, para o jornalismo incisivo, para a crítica. A questão é: Quem é que vai baixar a cabeça (bow down) e quem, em nome da liberdade de expressão e da Constituição, vai dizer o que pensa (speak up)?”

O BILDERBERG DE TORRES VEDRAS, A GLÓRIA DE MOEDAS E A MODERAÇÃO FURIOSA DE SEGURO

Setembro 14, 2025

J.J. Faria Santos

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À luz de Agosto, no remanso da Quinta da Carlota, reuniram-se para debater “assuntos de interesse comum” (segundo notícia do Público), o Onassis português (Mário Ferreira), o encarregado de Deus (André Ventura) e o Neptuno que vai pôr a piolheira na ordem (Gouveia e Melo). Sobre este Bilderberg de Torres Vedras, ninguém esteve disponível para prestar declarações. Não se percebe muito bem que “interesses comuns” possam ter Ventura e Gouveia e Melo, depois de o primeiro ter disponibilizado o apoio ao segundo e deste ter ostensivamente enxotado os cheganos da sua comitiva. A menos que o Henrique, enquanto hesita entre projectar uma imagem de autoridade que possa resvalar para o autoritarismo ou amaciar a sua intervenção, arriscando que Ventura lhe chame “frouxo”, tenha interiorizado que talvez venha a precisar dos 20%  dos “extremos” para vencer na segunda volta das presidenciais e que seria avisado não hostilizar em demasia o eleitorado do Chega.

 

Lisboa deveria ser o elevador das ambições de Carlos Moedas até à glória do cargo de primeiro-ministro. A presidente do Parlamento Europeu, Roberta Metsola, acha que ele tem “qualidades raras” para um político. “Humano, entende, consegue falar com qualquer pessoa e ouve muito as pessoas”, declarou em Junho de 2023. Infelizmente para ele, o que ressalta do seu perfil em 2025 é a relação conflituosa com a verdade, a vitimização enquanto estratégia política, a desadequação psicológica para lidar com contrariedades, a falta de obra feita, a fuga a explicações e a dependência da propaganda. Em suma: amuos, mentiras e vídeos no TikTok, rede social onde tem dezasseis vezes mais seguidores do que Alexandra Leitão e cerca de 4% dos seguidores de André Ventura.

 

Hostilizar é uma palavra que não combina com António José Seguro, aspirante a Presidente da República, cuja candidatura, garante, “não surgiu numa combinata [boa sorte na pesquisa da palavra nos dicionários…] num directório partidário”, razão pela qual, assegura, tem muitos apoios de todos os quadrantes políticos. No contexto de uma conjuntura polarizada, Seguro oferece moderação e “cultura de compromisso”. É louvável. Analistas de diversas procedências ideológicas caracterizam-no como um candidato sério, decente, honesto. E, no entanto, a dúvida, a inquietação, persiste. A de que a moderação se traduza numa falta de assertividade paralisante que redunde na inutilidade. Assim como se, depois de ter criado a “abstenção violenta”, cunhasse a moderação furiosa, ambas consistindo num marcar de posição com a perenidade das palavras escritas na areia que a maré apaga.

POR QUE RAZÃO TRUMP NÃO É TRATADO COMO UM DITADOR?

Setembro 07, 2025

J.J. Faria Santos

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Donald Trump já declarou que a Venezuela “está a ser governada por um ditador”. Se Nicolás Maduro decidisse ripostar no mesmo tom, e usar uma retórica infantil ao estilo do presidente americano, poderia dizer: Quem diz é quem é! Alinhemos no jogo “descubra as diferenças”.

 

Maduro é acusado de não aceitar os resultados eleitorais e de ter cometido fraude. Trump mantém que venceu as eleições de 2020, inspirou e patrocinou o assalto ao Capitólio e à democracia americana, e pressionou o secretário de Estado da Geórgia para lhe arranjar 11 780 votos.

 

Maduro é acusado de perseguir os opositores, usando a violência e a tortura. Trump, em 2023, admitiu utilizar o FBI e o Departamento de Justiça (e até as Forças Armadas) para atacar os seus rivais políticos. Em Março deste ano, defendeu que os seus adversários deveriam ser presos.

 

Maduro é acusado de controlar o aparelho judiciário. Trump nomeou para o Supremo juízes marcadamente conservadores, mandou investigar o ex-procurador que supervisionou duas investigações criminais contra ele, despediu funcionários que trabalharam com o então procurador e diz que “um punhado de juízes de esquerda radical comunista” fazem obstrução à aplicação das leis.

 

Maduro é acusado de controlar e condicionar o acesso da oposição à comunicação social. Trump comanda uma estrutura descomunal de propaganda, desinformação e notícias falsas. Ameaçou retirar as licenças de radiodifusão a estações de televisão, alegadamente por fazerem uma cobertura “tendenciosa” da sua presidência, e processou meios de comunicação social. Pediu o despedimento de colunistas, barrou o acesso de agências de notícias à Casa Branca e ameaçou acabar com o sigilo das fontes jornalísticas.

 

Maduro deve a sua continuidade no poder ao apoio das Forças Armadas, nomeadamente o Exército, que se terá transformado numa extensão do governo, beneficiando do acesso a cargos estatais e de oportunidades na economia venezuelana. Trump, com falsos pretextos, aposta na militarização das ruas, colocando a Guarda Nacional a “restabelecer a lei, a ordem e a segurança pública”. Como Maduro, Trump promove e premeia os que lhe são leais, nomeando pessoas sem qualificações para determinados cargos, e persegue os que o contrariam ou, pura e simplesmente, cumprem com rigor a sua função, como foi o caso de Erika McEntarfer, directora do gabinete de estatística.

 

Maduro, para contrariar o isolamento e as sanções, intensificou as suas relações com regimes párias ou liderados por “homens fortes”, como o Irão, a China e a Rússia. Já Trump, por feitio, elogiou um Xi Jinping “forte como granito”, o “génio” Putin e até um Hitler que “fez algumas coisas boas”.

 

Por que razão Trump não é tratado como um ditador? A pergunta é retórica e a resposta é óbvia – porque é o presidente da principal potência económica e política do mundo. Além do mais, ele próprio declarou: “Eu não gosto de ditadores. Não sou um ditador. Sou um homem muito sensato e inteligente.” Mais claro não podia ser. Só um militante da “esquerda radical comunista” é que poderá pôr em causa a bondade destas afirmações. Ou aquele historiador argentino, Federico Finchelstein, que coloca Donald  na lista dos “aspirantes a fascistas”.

MARCELO LIVE NA MADRASSA DO PSD

Agosto 31, 2025

J.J. Faria Santos

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A ideia de que o Presidente da República cometeu uma gafe é absurda. Estamos a falar de alguém a quem atribuem uma lendária inteligência, uma incomparável capacidade de análise e uma gloriosa presciência. Marcelo disse o que disse, onde disse e nos termos em que disse por sua exclusiva e irreprimível vontade, na plena posse do domínio das ferramentas da retórica e com a plena consciência do seu potencial efeito jornalístico. As suas declarações mais disruptoras foram proferidas em ambientes descontraídos e despojados de carga institucional. Foi o caso do célebre jantar com correspondentes estrangeiros, em que traçou o perfil psicológico e sociológico de Montenegro, e agora na Universidade de Verão do PSD, onde nem faltou uma aparição live inesperada, nem o soundbite da semana: “O líder máximo da maior superpotência do mundo, objetivamente, é um ativo soviético ou russo.” Convém não esquecer que apesar do nome, o evento social-democrata (que inclui uns convidados independentes e até doutros partidos), tendo em conta os discursos que os ministros lá vão fazer e a intervenção de Hugo Soares, é basicamente um seminário de propaganda e endoutrinamento. Ou, como diria Miguel Relvas com superlativa subtileza, uma espécie de madrassa.

 

O pronunciamento de Marcelo sobre Trump não é original. Em Janeiro de 2021, o jornal The Guardian fazia eco das revelações de um ex-espião do KGB, Yuri Shvets, no sentido de que o magnata americano é, há mais de quatro décadas, “cultivado como um activo russo”. Shvets revelou que o KGB tinha recolhido bastante informação acerca das características pessoais de Trump, visto como alguém “extremamente vulnerável intelectualmente e psicologicamente, e susceptível à lisonja”, bem como disponível para “papaguear propaganda antiocidental”. Trump terá tido contactos com agentes ou colaboradores do KGB, quer no âmbito da sua actividade empresarial nos EUA, quer no contexto de viagens que efectou a Moscovo e a São Petersburgo. O ex-espião russo foi uma das principais fontes do livro American Kompromat do jornalista americano Craig Unger. Em Março deste ano, um fact-checking da Euronews não conseguiu comprovar a alegação de outro ex-KGB, Alnur Mussayev, de que Trump teria sido recrutado pelo KGB em 1987, tendo-lhe sido atribuído o nome de código “Krasnov”. Contactado pela Euronews, Craig Unger fez questão de distinguir entre agente e activo: “Enquanto que um agente é um funcionário pago de um serviço de inteligência, um activo é um amigo confiável disponível para favores.” Considerando estas definições, e tendo em conta a admiração do presidente americano pelo seu homólogo russo, percebe-se o comentário de Marcelo, com especial enfâse no “objectivamente”. Que o Presidente da República o deva verbalizar é outra questão, a ser trabalhada pelo irascível ministro dos Negócios Estrangeiros. Marcelo, claro, está para além do bem e do mal, do salamaleque diplomático e do perfil institucional. É um primus inter pares com licença para ser elefante em loja de porcelanas.

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