OS CLÁSSICOS NA VANGUARDA
Janeiro 23, 2018
J.J. Faria Santos
Já sabíamos que não era dado a purismos. Que rigor, integridade artística irrepreensível e talento não implicavam submissão a capelinhas ou regiões demarcadas de sonoridades. Que via na miscigenação dos sons e dos estilos uma garantia de inovação. Já o tínhamos ouvido, por exemplo, cantar a Gaivota acompanhado pela toada de flamenco da guitarra de Joel Xavier, e Palavras Minhas envolta num sumptuoso arranjo com Bernardo Sassetti ao piano e Carlos Martins ao saxofone, com ele em modo cantor de jazz. Agora, com a cumplicidade do produtor cubano Oscar Gomez, reinventou Lisboa, Menina e Moça.
O tema arranca com o piano e uma espécie de spoken word. Depois há a guitarra a sublinhar a portugalidade e arremedos de jazz latino com a proeminência do saxofone. Até que entra um coro de vozes e estamos quase em território de escola de samba. De forma soberba e magistral, o cantor molda-se a esta paisagem sonora com a facilidade com que a genialidade disfarça a complexidade e entretém-se a fazer citações. Nestas alturas, a lisboeta menina e moça acolhe Guantanamera, Sodade e a versão espanhola de Meu Fado Meu.
Como sempre, como dantes, Carlos do Carmo está na linha de frente. É este seu tema que abre o alinhamento de Jazz in Fado, projecto editado pela Universal Music Portugal no final do ano passado e que inclui, entre outros, Hélder Moutinho, António Zambujo, Raquel Tavares, Ana Bacalhau e Carminho, esta última inimitável e arrebatadora no lindíssimo Escrevi Teu Nome no Vento.
Pioneiro do drum & bass e do trip-hop, Goldie estabeleceu a sua reputação em meados dos anos 90 do século passado com a edição do álbum Timeless, com a mistura harmoniosa de batidas aceleradas e linhas de baixo com apontamentos orquestrais e voluptuosas vozes soul. O ano passado editou The Journey Man, alvo de críticas mistas, as menos favoráveis a sublinhar a sua tendência para ser excessivamente ambicioso e a notar a sua dificuldade em disciplinar o seu talento. Seja como for, o álbum em questão conta com colaborações de gente como Pat Metheny e José James, apresentando as tais excelentes vozes soul soberbamente amparadas pelo piano ou por arabescos orquestrais, ou comandando a melodia sobre um cama de breakbeats.
This is not a love song, Mountains e Tomorrow’s not today são apenas três amostras da exemplar conjugação da linguagem clássica da música de inspiração soul com os ritmos modernos, sem que tudo se dilua numa amálgama insípida de banda sonora para ginásio com pretensões a hino erótico como a que prevalece nas tabelas de vendas da actualidade. É sempre preferível a ambição desmedida que instala alguma desordem e arrisca o falhanço à mediania que assenta na repetição de fórmulas.