OS ARDORES DA PAIXÃO SÃO FOGOS DO SENHOR
Fevereiro 13, 2018
J.J. Faria Santos
“Durante a noite, no meu leito / busquei aquele que a minha alma ama; / procurei-o mas não o achei.”, lamenta-se a Esposa. Mas eis que, depois de percorrer a cidade, o encontrou. “Agarrei-me a ele e não o largarei mais, / até que o tenha introduzido na casa de minha mãe / no quarto daquela que me concebeu.”
O encantamento é mútuo. “O teu porte assemelha-se ao da palmeira / e os teus seios são os teus cachos. Eu disse: ’Subirei à palmeira, / e colherei os seus frutos.’”, desabafa arrebatadamente o Esposo, para logo acrescentar: “A tua palavra é como um vinho excelente / que corre deliciosamente para o amado / e desliza por entre os seus lábios e os seus dentes.”
A Esposa mostra-se preocupada com as convenções sociais ou até, porventura, com os constrangimentos morais ou religiosos, expressando alguma frustração por ter de moderar os seus ímpetos amorosos, pois confessa: “Quem me dera que fosses meu irmão / amamentado aos seios de minha mãe / para que, encontrando-te fora, te pudesse beijar / sem que ninguém me censurasse.”
O Esposo, porém, apressa-se a sossegá-la com uma eloquente descrição da vitalidade do amor: “Põe-me como um selo sobre o teu coração, / como um selo sobre os teus braços; / porque o amor é forte como a morte, / a paixão é violenta como o sepulcro, / os seus ardores são chamas de fogo, / os seus fogos são fogos do Senhor. / As muitas águas não poderiam extinguir o amor, / nem os rios o poderiam submergir.”
O Cântico dos Cânticos é um dos livros didácticos do Antigo Testamento, sendo apresentado como “um poema em que se canta e exalta o amor humano como fruto da natureza sexuada, origem da complementaridade e convívio social”. E é seguramente um bom ponto de partida para rejeitar interpretações doutrinárias de cariz religioso que censuram a expressão e a vivência dos afectos. Que não só se afastam da sua missão de conforto espiritual como também se aproximam da desumanidade e da tentação dirigista e ditatorial. Ou então são, pura e simplesmente, insensatas. Porque “muitas águas não poderiam extinguir o amor”, a sua chama divina. Nem sequer a água benta de D. Manuel Clemente. É que estes não são fogos que incineram; são fogos que iluminam e inspiram a existência.
Citações extraídas da 8ª edição da Bíblia Sagrada da Difusora Bíblica
Imagem: "Adão e Eva" de Tamara de Lempicka (courtesy of Bert Christensen)