LITERATURA DE PRIMEIRA CLASSE
Janeiro 05, 2016
J.J. Faria Santos
O autor entregou-se à obra durante dezoito meses. Mercedes, a mulher, manteve os credores à distância. Bens e equipamentos domésticos foram empenhados em troca de liquidez (telefone, frigorífico, rádio, jóias). Ele vendeu o seu Opel branco com o interior vermelho. Quando o romance ficou pronto, como não tinham dinheiro (82 pesos) para enviá-lo na sua totalidade, remeteram a primeira metade, e a segunda só chegou ao destino depois de uma visita à loja de penhores. Na empreitada, o casal derretera o equivalente a 10 000 dólares e o escritor fumara 30 000 cigarros.
Cem Anos de Solidão foi editado em Buenos Aires em 1967 e quinze anos depois o seu autor, Gabriel García Márquez , ganharia o Prémio Nobel. As circunstâncias da sua elaboração são relatadas por Paul Elie na última edição da Vanity Fair. Elie explica que “ realismo mágico transformou-se na expressão para designar a violação das leis naturais através da arte” e, para exemplificar o prestígio e admiração que Gabo suscitava, cita uma hiperbólica recensão de Salman Rushdie a propósito de uma outra obra do colombiano (Crónica de Uma Morte Anunciada): “Críticos suicidam-se por falta de superlativos originais”.
Penhorados foram os bens do autor, penhorados sentimo-nos nós, gratos pela sua persistência e pelo seu génio. E pela forma como colocou a literatura no centro da sua existência. Como vociferou o “sábio catalão” de Cem Anos de Solidão, perante os revisores dos caminhos-de-ferro que pretendiam tratar caixotes com livros como carga, “O mundo estará fodido de vez no dia em que os homens viajarem em primeira classe e a literatura no vagão de carga.” (Publicações Dom Quixote, Agosto de 1988, página 315).