Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

NO VAGAR DA PENUMBRA

NO VAGAR DA PENUMBRA

SHITHOLE - A SANITA DOURADA

Janeiro 28, 2018

J.J. Faria Santos

installation-maurizio-cattelan-america-ph003.jpg

Para Donald J. Trump, uma sanita em ouro de 18 quilates, mesmo com a assinatura do artista italiano Maurizio Cattelan, não deve passar (literalmente) de um shithole. Conforme a definiu Paul Schwartzman no Washington Post, “a sanita em ouro maciço, completamente funcional, é uma peça interactiva intitulada América que os críticos têm descrito como uma sátira incisiva ao excesso de riqueza neste país”. Durante um ano a peça esteve em exibição nos sanitários públicos do quinto andar do Museu Guggenheim, em Nova Iorque, para uso dos visitantes. 

 

É certo que Donald e Melania tinham solicitado ao museu o empréstimo de um quadro de Van Gogh, Paisagem com Neve (a curadora do museu, Nancy Spector, lamentou não ser possível aceder ao pedido), mas não seria de esperar que o Presidente, com o seu gosto por dourados (da talha dourada à chuva dourada) e decorações barrocas, apreciasse a obra de Catellan? Pensando bem, não seria até grandiloquente que ele disparasse os seus tweets fora de horas com o traseiro ricamente acoplado a uma sanita dourada?

 

Spector explicou ao casal Trump que o quadro estava impedido de viajar excepto em ocasiões raras, e mostrava-se esperançada que a oferta da América fosse apreciada. Não é crível que a sugestão de Spector tenha sido desprovida de ironia ou intencionalidade, tendo em conta que no dia a seguir à eleição presidencial escrevera no Instagram: “Este deve ser o primeiro dia da revolução para recuperar a nossa amada pátria do ódio, do racismo e da intolerância”.

 

O jornalista do Washington Post recorda uma característica pessoal de Trump, o facto de sofrer de misofobia, para sugerir que seria improvável que ele aceitasse uma sanita já previamente utilizada. Mesmo sabendo que, durante o período de tempo em que esteve em exibição, aproximadamente de quinze em quinze minutos uma equipa de limpeza tratava de manter o dourado imaculado. Mas, quem sabe? Talvez Trump contrate uma equipa de infecciologistas e arranje maneira de tornar a América de Maurizio Cattelan novamente grandiosa.

 

Imagem: www.guggenheim.org

OS CLÁSSICOS NA VANGUARDA

Janeiro 23, 2018

J.J. Faria Santos

Já sabíamos que não era dado a purismos. Que rigor, integridade artística irrepreensível e talento não implicavam submissão a capelinhas ou regiões demarcadas de sonoridades. Que via na miscigenação dos sons e dos estilos uma garantia de inovação. Já o tínhamos ouvido, por exemplo, cantar a Gaivota acompanhado pela toada de flamenco da guitarra de Joel Xavier, e Palavras Minhas envolta num sumptuoso arranjo com Bernardo Sassetti ao piano e Carlos Martins ao saxofone, com ele em modo cantor de jazz. Agora, com a cumplicidade do produtor cubano Oscar Gomez, reinventou Lisboa, Menina e Moça.

O tema arranca com o piano e uma espécie de spoken word. Depois há a guitarra a sublinhar a portugalidade e arremedos de jazz latino com a proeminência do saxofone. Até que entra um coro de vozes e estamos quase em território de escola de samba. De forma soberba e magistral, o cantor molda-se a esta paisagem sonora com a facilidade com que a genialidade disfarça a complexidade e entretém-se a fazer citações. Nestas alturas, a lisboeta menina e moça acolhe Guantanamera, Sodade e a versão espanhola de Meu Fado Meu.

Como sempre, como dantes, Carlos do Carmo está na linha de frente. É este seu tema que abre o alinhamento de Jazz in Fado, projecto editado pela Universal Music Portugal no final do ano passado e que inclui, entre outros, Hélder Moutinho, António Zambujo, Raquel Tavares, Ana Bacalhau e Carminho, esta última inimitável e arrebatadora no lindíssimo Escrevi Teu Nome no Vento.

 

Pioneiro do drum & bass e do trip-hop, Goldie estabeleceu a sua reputação em meados dos anos 90 do século passado com a edição do álbum Timeless, com a mistura harmoniosa de batidas aceleradas e linhas de baixo com apontamentos orquestrais e voluptuosas vozes soul. O ano passado editou The Journey Man, alvo de críticas mistas, as menos favoráveis a sublinhar a sua tendência para ser excessivamente ambicioso e a notar a sua dificuldade em disciplinar o seu talento. Seja como for, o álbum em questão conta com colaborações de gente como Pat Metheny e José James, apresentando as tais excelentes vozes soul soberbamente amparadas pelo piano ou por arabescos orquestrais, ou comandando a melodia sobre um cama de breakbeats.

This is not a love song, Mountains e Tomorrow’s not today são apenas três amostras da exemplar conjugação da linguagem clássica da música de inspiração soul com os ritmos modernos, sem que tudo se dilua numa amálgama insípida de banda sonora para ginásio com pretensões a hino erótico como a que prevalece nas tabelas de vendas da actualidade. É sempre preferível a ambição desmedida que instala alguma desordem e arrisca o falhanço à mediania que assenta na repetição de fórmulas.

 

O PASSADO, O FUTURO, A SOLIDÃO E O SILÊNCIO

Janeiro 16, 2018

J.J. Faria Santos

Ryan S. Brown_Alone in her Thoughts.jpg

Escolhemos o passado que queremos, mas não quando queremos. Por vezes, ele impõe-se perante nós, parece rasurar cruelmente as boas memórias e esfrega-nos na cara os fracassos, as insuficiências e as más escolhas. É disto que fala Sandro William Junqueira quando escreve em Quando as Girafas Baixam o Pescoço (Editorial Caminho):”Por que é que o passado tem esta perna alta, esta passada larga? Para onde quer que vá apanha-a com o seu braço comprido e toca-lhe no ombro para logo descoser o dique das recordações. E o rio galga as margens e inunda o terreno baldio do seu desespero. A memória é a âncora que nos prende ao Inferno.”

 

O futuro é também o envelhecimento. “Acumulamos cansaço sobre cansaço ao longo do comprido túnel do tempo, como mantos que se sobrepõem nas costas, para as dobrarem”, escreve S. W. Junqueira. Podemos valorizar a experiência, a maturidade, a serenidade (por vezes uma máscara da resignação) com que lidámos com as contrariedades, mas a fadiga está lá. A partir de certa altura, o inventário das perdas está demasiadamente presente e não há vida diariamente reinventada que o possa fazer esquecer. Continuamos a acreditar na luz ao fundo do túnel do tempo, mas interrogámo-nos com maior frequência acerca da sua resistência e durabilidade. Um sopro mais ou menos intenso extinguirá a chama? Teremos engenho para a reavivar?

 

A generalidade das pessoas vive no terror da solidão. Do fracasso de todas as fórmulas de conjugalidade, do abandono, da redução ao estado de pária social. E sobretudo da situação extrema em que a perda de autonomia possa conduzir à mais abjecta miséria humana. Na teoria geral do mundo do senso comum, a solidão parece ser encarada como uma derrota avassaladora no jogo social. Parece nunca ocorrer a ninguém que a aversão à solidão pode também ser sintoma da incapacidade de cada um de nós se confrontar consigo próprio. Com os nossos talentos e as nossas lacunas. É que por mais legítimo (e seguramente reconfortante) que seja a expectativa de podermos contar com a nossa rede de afectos, haverá sempre circunstâncias em que seremos confrontados com a responsabilidade de decidir acerca das mais íntimas das nossas convicções. Nessa altura, retiramo-nos do mundo, da mundanidade. Como num sufrágio, como se estivéssemos numa cabina de voto, decidimos o nosso rumo. A analogia não é assim tão absurda. Fala-se da solidão do poder, por que razão não se poderá falar da solidão de viver?

 

Há quem ponha na mesma equação a solidão e o silêncio. Quem, ao chegar a casa, ligue a televisão ou o rádio para embalar o quotidiano com a companhia dos sons, das vozes. Como se preenchesse espaços em branco, como se esconjurasse a vacuidade. Os modos de vida modernos oferecem-nos doses infinitas de ruído orquestrado de forma a parecer melodia. O som ambiente é de tal modo omnipresente (nos elevadores, nas esplanadas, nos edifícios em geral) que já nos esquecemos do legítimo som do meio ambiente. E quantas vezes tagarelamos na ilusão de estarmos a dialogar? Seria mais sensato meditar na sabedoria clássica de Eurípedes: “Fala se tens palavras mais fortes do que o silêncio, ou então guarda silêncio”.

 

Imagem: "Alone in her Thoughts" de Ryan S. Brown (courtesy of Bert Christensen)

TORNAR PORTUGAL NA NOVA FINLÂNDIA

Janeiro 09, 2018

J.J. Faria Santos

IMG_20180107_134225.jpg

Ele diz que tem um programa “que é absolutamente extraordinário, feito por uma equipa fantástica”. Não, não estou a falar de Donald Trump e da sua propensão para os auto-elogios hiperbólicos. Pedro Santana Lopes não quer tornar Portugal grandioso, limita-se a querer que “Portugal seja a nova Finlândia”. (Curiosamente, um dos ideólogos da direita, Rui Ramos, defendeu em Novembro passado que o actual Governo é composto por uma “geração derrotada, uma espécie de mortos-vivos da política”, cuja origem remonta ao consulado governamental de Guterres que almejaria, precisamente, “transformar Portugal numa Finlândia”. Deste ponto de vista, lá se vai o “caminho novo” que Santana pretende trilhar. Enfim, pode sempre argumentar que a receita para lá chegar é diferente.)

 

Não lhe faço a injustiça de o comparar a Trump, mas posso sempre fazer notar que ambos apreciam a mobilização dos apoiantes - enquanto o Presidente americano viu na sua tomada de posse uma multidão nunca antes reunida em cerimónias idênticas, Santana Lopes promete “voltar a encher a Alameda” graças ao entusiasmo que o seu projecto vai suscitar. Não se imagina a perder, até porque tem feito um “trabalho imenso” e apresentou um programa que julga “ninguém apresentou”. Desafiado pelo Expresso a encarar um cenário de derrota, responde prontamente: “Só gosto de trabalhar com hipóteses positivas.” (Em Belém, Marcelo suspirou com a perspectiva de lhe sair mais um “optimista irritante”.)

 

Em relação ao Presidente da República, Santana já se pronunciou a favor da sua recandidatura, apoiando o seu mandato “exigente” mas “solidário”, e aproveita a entrevista ao semanário para afirmar que o PR introduziu na política portuguesa uma nova “lógica de funcionamento”, pelo que “as lideranças distantes das pessoas não são já para este tempo”. Rui Rio, o seu adversário na luta pela liderança do PPD/PSD, além de “limitado” e “paroquial”, cometeu o sacrilégio de não ter visitado as localidades atingidas pelos incêndios. Como sabemos, a política do século XXI exige um atestado de afectos, uma certidão de empatia, um elevado quociente de inteligência emocional.

 

Estas considerações foram tecidas apesar da sua relutância em falar de traços de personalidade, porque acha que “isso é uma conversa para revistas sociais”. Já a historiadora Maria de Fátima Bonifácio, não obstante considerar que nenhum dos candidatos lhe “convém”, não hesita em caracterizar Santana Lopes como “doce, charmoso, afectivo, é (quase) impossível não ser cativado por ele. Um homem bom, sem dúvida.” (Público, 6.01.2018)

 

De revistas sociais, quem percebe é Lili Caneças. Que até já desfilou numa arruada empunhando uma bandeira da coligação Portugal à Frente, na companhia de Santana, Marcelo e Passos Coelho. Agora, parece rendida à personalidade de Mário Centeno, “o CR7 das Finanças”. Seguramente que lhe deve ter dito que ele não aparenta ser um “morto-vivo”. Na verdade, é altamente provável que lhe tenha dito qualquer coisa como isto: Não percebo o que esse tal Rui Ramos quis dizer com essa do morto-vivo, darling. Estar vivo é o contrário de estar morto!

TRUMP E MARCELO - A POLÍTICA COMO REALITY SHOW

Janeiro 02, 2018

J.J. Faria Santos

Donald_Trump_swearing_in_ceremony.jpg

“Tenho sido muito crítica, sobretudo em relação aos noticiários televisivos e à sua dependência financeira do drama baseado na realidade e que neste momento tem como centro a Casa Branca, que seguem como quem segue um guião, de modo muito próximo e com as mesmas ferramentas de um reality show. Vemos a intriga em directo, quem entra e quem sai. O problema é que estes formatos são lucrativos, porque as pessoas vêem as notícias por cabo da mesma maneira que vêem reality shows. Vêem-nas como entretenimento, causam dependência, criam expectativa como as Donas de Casa Desesperadas…” É nestes termos que em entrevista ao Público Naomi Klein, a propósito do fenómeno Trump, se refere a um contexto pejado de fake news e factos alternativos. Klein tem uma visão bastante cáustica do desempenho jornalístico, chegando ao ponto de afirmar que “se consegue quase ver o sofrimento físico nos rosto dos pivots” quando têm de mudar de assunto para abordar matérias da “política real”.

 

No dia seguinte, num artigo no mesmo jornal onde verberava o “tacticismo que domina a política portuguesa”, Pacheco Pereira aludia “a uma comunicação social muito limitada ao ‘caso’ da semana, explorado ad nauseam”. Crítico impenitente das fórmulas jornalísticas prevalecentes, cada vez mais a reboque da indignação do dia nas redes sociais, o historiador já notava em Setembro passado algo que Marcelo Rebelo de Sousa e Donald Trump tinha em comum, e que era o facto de “ambos terem chegado ao poder através de uma contínua utilização do sistema mediático moderno, com criatividade e intuição, moldando o universo dos media aos seus interesses pessoais e políticos”. Nessa altura, Pacheco Pereira notava “a complacência e a cumplicidade” de muitos jornalistas. Agora, vê em Marcelo “um factor suplementar de instabilidade”, e encontra naquilo a que se convencionou chamar de “afectos” nada mais do que “uma fórmula de aumentar tanto a sua popularidade que ela lhe serve de poder em matérias em que constitucionalmente não se devia meter”.

 

Portanto, será pedir demais uma cobertura menos hagiográfica da agenda presidencial? Uma análise mais incisiva às suas motivações e às suas deliberações? Uma visão menos maniqueísta da realidade política em que Marcelo parece tão etéreo que quase ascendeu ao estatuto de líder espiritual da nação? Algo que vá além da crónica das suas viagens pela nossa terra. Não está em causa uma perspectiva globalmente positiva do seu mandato até ao momento (que subscrevo); trata-se de não veicular uma visão acrítica de cada gesto ou de cada palavra. Constatamos a sua omnipresença, supomos a sua omnisciência, mas permitimo-nos duvidar da sua omnipotência. Nem mesmo um reputado constitucionalista pode fazer prevalecer a magistratura dos afectos sobre a separação de poderes.

 

Imagem: Foto de Joyce N. Boghosian (Wikimedia Commons)

Mais sobre mim

foto do autor

Subscrever por e-mail

A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.

Arquivo

  1. 2024
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  1. 2023
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  1. 2022
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  1. 2021
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  1. 2020
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  1. 2019
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  1. 2018
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  1. 2017
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  1. 2016
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  1. 2015
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  1. 2014
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  1. 2013
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  1. 2012
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  1. 2011
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
Em destaque no SAPO Blogs
pub