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NO VAGAR DA PENUMBRA

NO VAGAR DA PENUMBRA

PONTO DE ENCONTRO II - BOSSA NOVA

Abril 25, 2017

J.J. Faria Santos

 

As reuniões familiares são tanto sobre o passado como sobre o futuro. E ainda bem que assim é. A nostalgia e a evocação do que já foi e dos que já se foram podem ser reconfortantes, mas nada como o dinamismo irrequieto das novas gerações e a sua sofreguidão de viver para nos reconciliarmos com uma visão exaltante da vida, mesmo quando, como escreveu Clarice Lispector em Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres, “Existir é tão completamente fora do comum que se a consciência de existir demorasse mais de alguns segundos, nós enlouqueceríamos”.

 

Quase cinco anos depois, a segunda edição de uma espécie de cimeira familiar luso-brasileira aconteceu com a participação especial de um trio vindo do Brasil, numa altura em que, citando Vinicius e o seu Sonêto de Maio, “Suavemente Maio se insinua / Por entre os véus de Abril, o mês cruel / E lava o ar de anil, alegra a rua / Alumbra os astros e aproxima o céu”. Desta vez Abril prescindiu da crueldade e o calor atmosférico pediu meças à atmosfera calorosa que persistiu durante o dia inteiro.

 

Havia no ar um perfume a bossa nova. E isso foi mérito sobretudo de quem atravessou o Atlântico. Ao contrário de ritmos mais avassaladores como o forró ou o samba (que me deixam sempre na dúvida se a alegria esfusiante é o retrato de uma felicidade permanente ou um disfarce corajoso e comovente de uma tristeza que teimosamente resiste), a bossa nova, com o seu balanço suave e o seu aroma a mar e sol, lembra-me sempre a alegria tranquila de quem se tornou mestre na arte de bem viver.

 

As conversas em grupos abertos foram-se multiplicando, as histórias de sempre foram recontadas (qual será o milagre da originalidade redescoberta que permite que continuemos a acolher com o mesmo espanto e satisfação narrativas que já ouvimos tantas vezes?), os protagonistas alternaram. A varanda funcionou como sala de fumo ao ar livre, refúgio de vícios. (O que seria da vida sem vícios? A virtude cansa e está seguramente sobrevalorizada…)

Tudo terminou (não pensemos no fim, isto é no fundo um intervalo. Como nas novelas, continua no próximo capítulo…) com um retrato de grupo, numa encenação que Fellini não desdenharia, culminando com o fotógrafo de ocasião (um empregado do restaurante) a ser aplaudido unanimemente pelo mérito de ter conseguido enquadrar toda a gente.

 

O trio brasileiro estava nas vésperas de partir para Londres, segunda paragem na rota europeia. Poderá o charme londrino fazer esquecer o Sol oculto pelo nevoeiro persistente? Confrontados com o London fog sentirão saudades da luz de Portugal? Ah! Chega de saudade! Mas a verdade é que “os olhos já não podem ver / Coisas que só o coração pode entender”.

KIM JONG-TRUMP

Abril 17, 2017

J.J. Faria Santos

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                                               Fonte: www.neogaf.com

 

“É bruto, ignorante, mentiroso, dado a fantasias, habituado ao bullying, sem princípios, moral ou vergonha, egocêntrico até ao limite.” Eis o retrato psicológico do Presidente dos Estados Unidos traçado por Pacheco Pereira no Público de sábado. O pretexto foi a necessidade de não deixar que a maneira genericamente favorável com que foi encarado o ataque à Síria faça esquecer os perigos de uma personalidade instável e errática.

 

Na New Yorker online, também Jeffrey Frank se indigna com o manto de carisma presidencial que subitamente enfeita os ombros de Trump, como se alguém tivesse carregado no “botão da amnésia nacional”. Frank, que recorda as palavras que ele proferiu em Novembro, poucos dias antes das eleições, em que censurava Hillary Clinton por alegadamente querer iniciar “uma guerra na Síria em conflito com uma Rússia com capacidade nuclear” e alertava para o risco de uma terceira guerra mundial, frisa que o que é sobremaneira preocupante é que Trump “não pensa nas consequências do que diz e faz”, e que nas suas acções não se consegue distinguir nem consistência nem um princípio orientador. E neste aspecto, conclui, não é diferente de Kim Jong-un.

 

O paralelo entre o Grande Sucessor da Coreia do Norte e o Presidente que quer tornar a América novamente grande já tinha sido objecto de considerações por parte do editor da Vanity Fair. Graydon Carter elencou as semelhanças no editorial da edição de Março: “Penteado manhoso? Confere. Fatos que assentam mal num corpo volumoso? Confere. Personalidade errática e instável? Confere. Maneira simplista de olhar o mundo? Confere. Vocabulário primitivo? Confere. Odeia um país a Sul? Confere. Não aceita qualquer contestação dos subordinados? Confere. Alta susceptibilidade e tendência para retaliar desproporcionadamente em relação aos críticos? Confere.”

 

Kim foi eleito em Setembro de 2016 com 100% dos votos na circunscrição que concorreu, das quase 700 divisões administrativas em que se divide o país. Claro que em cada uma delas só havia um candidato. Já Trump, num sufrágio que formalmente cumpriu as regras das democracias ocidentais e do primado da lei, ganhou confortavelmente no colégio eleitoral (o que era fundamental) mas perdeu no voto popular por uma margem ligeiramente abaixo dos três milhões de votos. A propensão para o exercício despótico do poder por parte de Trump estará teoricamente controlada pelos checks and balances do sistema político americano; Kim (e toda a sua patética legitimidade mitológica e dinástica) estará aparentemente controlado pela circunstância da sua dependência económica da China. Ainda assim, o poder absoluto deste último e a mistura alarmante de paranóia e exaltação do nacionalismo tornam-no um perigoso e imprevisível interveniente nos jogos de guerra.

 

DIAMANTES DE AMANTES

Abril 11, 2017

J.J. Faria Santos

 

Logo a seguir à hipérbole da predisposição dos franceses para arriscar a vida em duelos e morrer por amor vem a constatação óbvia da preferência por alguém que sobreviva e ofereça jóias caras. Mesmo o reconhecimento de que o literal beija-mão pode denunciar classe e sofisticação ao estilo europeu precede a evidenciação de que tal gesto, ainda que aprazível, não paga a renda de um modesto apartamento. Daí a importância dos diamantes.

 

Depois vem a natureza e a condição humana. Se todos perdemos o encanto da beleza no fim da vida, os homens, diz-se na canção escrita por Jule Styne e Leo Robin, esfriam o seu ardor amoroso, tornam-se indiferentes à medida que as mulheres envelhecem. E ainda se torna mais premente a questão da segurança financeira se meditarmos na importância do índice bolsista: é quando ele desce que os “trastes voltam para as esposas”.

 

O tema Diamonds are a girl’s best friend celebrizado por Marilyn Monroe reúne algumas pérolas de senso comum com a celebração esfusiante dos méritos dos diamantes, onde até está presente a invocação de alguns santos padroeiros da joalharia. E não falta uma visão bem-humorada que, admitindo a rigidez das articulações ou a curvatura da coluna vertebral, afirma que na Tiffany’s há que aprumar a postura. Até porque a verticalidade é uma qualidade apreciada.

 

Soube-se recentemente que a Sotheby’s de Hong Kong vendeu um diamante de 59,6 quilates, conhecido pelo nome Pink Star, pela quantia de 71,2 milhões de dólares. A blonde star Marilyn Monroe, enquanto Lorelei Lee de Os Homens Preferem as Loiras, apreciaria sobremaneira esta Pink Star, uma pedra preciosa que não perde a forma. Está sempre em forma, portanto, a mão do tempo não a corrompe. Essa é uma maldição de um certo tipo de amantes, não dos diamantes.

(EM)BUSTO - DORIAN GRAY REINVENTADO

Abril 04, 2017

J.J. Faria Santos

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                                                     Fonte: libero.pe

 

Imaginemos por um momento que o busto de Cristiano Ronaldo é a versão escultórica do retrato de Dorian Gray. Não é despicienda a proximidade artística entre a selvática representação produzida por Emanuel Santos do futebolista/empresário/filantropo/playboy internacional e a obra-prima de Wilde. Sabemos que Cristiano pediu ao escultor que umas rugas que estavam “salientes” fossem “desbastadas” para que o rosto ficasse “mais liso e jovial”. Curiosamente, outras saliências numa outra obra de arte não motivaram a mesma reacção do jogador, o que é compreensível dado que a juventude dourada revê-se numa virilidade reforçada. Mesmo em repouso. Ou firmemente ancorada nas pernas antes de disparar o remate fatal para a equipa adversária. Como explicava Lord Henry Wotton a Dorian Gray: “Quando a sua juventude o abandonar, também a sua beleza o abandonará, e então tomará a súbita consciência de que mais nenhuns triunfos lhe restam, ou terá de se contentar com esses mesquinhos triunfos que a memória do seu passado tornará mais amargos que derrotas. (…) Você pode ser o seu símbolo tangível. Com a sua personalidade, não há nada que não possa fazer. O mundo pertence-lhe por uma temporada…”

 

É certo que Oscar Wilde descreveu a obra de Basil Hallward como um “retrato em corpo inteiro de um jovem de uma beleza invulgar”, ao passo que o busto concebido por Emanuel Santos foi divulgado em todas as plataformas possíveis e imaginárias em tom jocoso, questionando a semelhança com o homenageado. E se tal como Gray viu a marcas do tempo contaminarem o seu retrato enquanto ele se manteve jovial, as dissemelhanças (ou deformações) do busto de Cristiano forem uma espécie de representação do Ronaldo fora do pedestal da perfeição física e moral? Estaríamos assim perante uma espécie de humanização do ídolo, com uma subalternização do seu ego e uma espécie de celebração dos seus defeitos e imperfeições. A ser assim, mesmo que tudo tenha acontecido à revelia da vontade ou da consciência de CR7, há um mérito indiscutível do escultor.

 

Claro que esta minha leitura da obra é pessoal e escandalosamente subjectiva. Já Wilde explicava que “Toda a arte é simultaneamente superfície e símbolo. Os que penetram para lá da superfície, fazem-no a suas próprias expensas. Os que lêem o símbolo fazem-no a suas próprias expensas. O que a arte espelha realmente é o espectador e não a vida”.

 

(As citações de O Retrato de Dorian Gray reportam-se à edição da Relógio D’Água com tradução de Margarida Vale de Gato.)

 

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