Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

NO VAGAR DA PENUMBRA

NO VAGAR DA PENUMBRA

O TRIUNFO DE ISABELLE

Março 28, 2017

J.J. Faria Santos

 

Há muitos anos, era eu já não teenager mas ainda claramente inconsciente, desenvolvi um interesse pela actriz francesa Isabelle Adjani. De tal maneira que uma cidadã francesa com quem me correspondi brevemente teve a gentileza de me enviar uma colecção de postais da vedeta gaulesa. Que eu ainda há pouco tempo conservava, mais por inércia que por nostalgia. (A propósito, a New Yorker editou online um texto de Michael Chabon onde este descreve a sua noção de nostalgia como uma “experiência emocional”, assim como um “telefonema directo para o passado” que obtém uma resposta. Qualquer coisa como um sentimento que nos atinge quando “uma porção mínima da beleza desaparecida do mundo é restaurada momentaneamente”, estabelecendo uma ligação.)

 

Que no duelo das Isabelles eu tenha preferido a Adjani à Huppert parece-me hoje um erro quase irreparável. Equívocos da juventude. Na verdade, foi só com A pianista, a adaptação de Michael Haneke ao grande ecrã do livro da nobelizada Elfriede Jelinek (um romance notável pelo tom impiedoso e cru com que descreve o abjecto e o desconforme), que os recursos e o talento de Huppert se me tornaram evidentes. E com o seu mais recente papel, o de Michèle Leblanc no filme Elle de Paul Verhoeven, ela reuniu a unanimidade da crítica especializada, que a considerou a equivalente europeia de Meryl Streep.

 

Michèle é uma empresária bem-sucedida, divorciada e envolvida com o marido da melhor amiga, com uma relação arisca com a mãe (uma mulher desinibida e prática no que se refere à satisfação das suas necessidades amorosas) e um passado trágico com o pai (um assassino em série) que a persegue. Uma mulher com passado, pois. (Por alguma razão Oscar Wilde escreveu: “Gosto de homens que têm um futuro e de mulheres que têm um passado.”) A trama de Elle gira à volta da violação de Michèle, na sua própria casa, e da forma como ela vai perseguir o seu agressor, culminando num perigoso e ambíguo jogo onde a sede de vingança se parece confundir com um anseio erótico. Curiosamente, a dada altura, Michèle Leblanc diz algo que a Erika Kohut de A Pianista poderia subscrever: “A vergonha não é um sentimento suficientemente forte para nos impedir de fazer o que quer que seja”.

 

A disponibilidade para correr riscos (artísticos, entenda-se) coloca Isabelle Huppert num patamar elevado, afastando a concorrência mais calculista ou menos aventureira. Alegadamente, e numa altura em que Verhoeven pensava produzir o filme em Hollywood, o papel principal foi recusado, entre outras, por Nicole Kidman, Julianne Moore e Sharon Stone. Actrizes dotadas, mas nesta altura é impossível imaginar outra intérprete para Michèle Leblanc, e esse é o maior triunfo de madame Huppert.

A TERRA DO NUNCA E A HISTÓRIA INTERMINÁVEL

Março 21, 2017

J.J. Faria Santos

blaise pascal-858636.png

 

Tal como Assunção Cristas também eu tenho “livros de literatura” para ler, mas ao contrário dela folhear o último tomo de Cavaco não faz parte da minha agenda. Porém, li a entrevista que o ex-Presidente concedeu ao Público. Igual a si próprio, invoca o caso do Estatuto Político-Administrativo dos Açores para explicar que face à incompreensão que a ignara massa popular revelava sobre o assunto, competia ao iluminado PR a “defesa do interesse nacional”. Se o tempo livre de Cristas é “muito limitado” (pelo que não é “prioritário” ler o livro das quintas-feiras), já Cavaco afirma ser “muito selectivo” naquilo que lê e ouve e a “imprensa escrita ocupa um lugar secundário” na hierarquia da sua informação. Pela primeira vez, honra seja feita aos entrevistadores São José Almeida e David Dinis, o assunto da vigilância a Belém foi abordado com alguma minuciosidade e sem a reverência habitual. Confrontado com a declaração do ex-Presidente de que se tratava da “tentativa de criar um facto político”, David Dinis não deixou de referir que a ser assim tal tentativa tinha origem na sua própria Casa Civil. Cavaco explica que o afastamento de Fernando Lima da sua assessoria de imprensa se deveu à “agressividade em relação à pessoa” que todo o caso provocara. “Foi até por respeito humano” que assim decidiu. De resto, negou por três vezes consecutivas (“nunca, nunca, nunca”) que alguém lhe tivesse falado de suspeitas de vigilância. O resto é a litania habitual: as “campanhas caluniosas”, a “cobardia política” dos deputados, as bicadas a Marcelo e a técnica para “despachar o jornalista”. A novidade é que “as pessoas inventam coisas diabólicas” (nota para Passos Coelho: o Diabo que não veio estará dentro de alguns de nós?)

Ele diz que não acumula “frustrações” e que chega ao fim (da carreira política, presume-se, embora ele se costume referir aos políticos com desdém) “perfeitamente realizado”. Quanto a mim, uma citação de um “livro de literatura” que neste momento ocupa os meus tempos livres, O Último Amante de Teresa Veiga (Edições tinta-da-china), e que reúne quatro novelas, adequa-se ao temperamento deste cidadão de Boliqueime. Reza assim: “Aliás, nunca acreditei muito na passividade sistemática de certos seres, normalmente propensos a interiorizar vinganças.”

 

No âmbito do inquérito aberto em Julho de 2013 já se efectuaram 260 buscas, já se inquiriram 170 testemunhas e já se autorizaram mais de 2600 escutas. No processo que já soma 91 volumes e 452 apensos trabalham 10 magistrados do Ministério Público coadjuvados por 22 inspectores da Autoridade Tributária. A procuradora-geral da República diz que “a prova recolhida (…) se encontra solidificada”, no entanto nota “a insuficiência dos relatórios de análise de prova, apresentados pelo órgão da polícia criminal, em relação a alguns segmentos”. Sim, o processo é sólido, não há o risco de evoluir para o estado gasoso e esfumar-se na nebulosa do arquivamento, mas alguém está a meter água. Paulo Silva ou Rosário Teixeira, presume-se. Joana Marques Vidal atendeu o pedido de prorrogação do prazo para a conclusão do inquérito da Operação Marquês, mas não fixou “de momento” a data para o seu encerramento. O futuro é infinito.

Em O Passado é Um País Estrangeiro (um “livro de literatura”), Ali Smith escreveu que “a verdade é como o sol. Olha-se de frente para ele e fica-se com os olhos afetados para toda a vida.” (Quetzal, tradução de Helder Moura Pereira)

E nós? Quando teremos direito à verdade sem eclipses? A toda a verdade, a da acusação e a da defesa. A complexidade é “enorme” e a “investigação criminal é dinâmica”. Admitamos que sim. Mas quando se atropelam princípios básicos do estado de Direito não se correrá o risco de transformar uma investigação criminal numa investigação criminosa? E a dada altura a dinâmica não terá de ser interrompida para evitar que se torne perniciosa?

PRIMAVERA MARCELISTA (S. BENTO DA PORTA ABERTA)

Março 13, 2017

J.J. Faria Santos

Os indicadores económicos são genericamente positivos (défice orçamental, crescimento do PIB, taxa de desemprego), existe paz social, a cooperação institucional ao nível do poder político parece ser exemplar, o Governo aparenta solidez na sua original heterodoxia e o último estudo de opinião coloca o principal partido do poder a crescer e a aproximar-se dos 40%. A nível internacional, a desconfiança parece ter-se dissipado e a solução governamental portuguesa tem despertado curiosidade e interesse. Embalado pela sua estratosférica popularidade, e para marcar o primeiro aniversário da sua chegada a Belém, o Presidente da República achou por bem afirmar ao Expresso que, apesar de ter havido “momentos maus e momentos menos bons”, o líder do seu partido nunca optou por uma “hostilização aberta”, pelo que “fica a porta aberta para Passos Coelho poder ser o segundo Governo” do seu mandato.

 

marcelo-rebelo-de-sousa-piscina-768x519.jpg

                                              Fonte: inimigo.publico.pt

 

Podia ter sido pior. Podia ter dito que Passos poderia ser o segundo Governo do seu primeiro mandato. O Expresso explica que Marcelo está frustrado por não vislumbrar uma alternativa à geringonça. E por a relação com a sua família política ter piorado. Para um homem tão apegado aos afectos, esta evolução deve ser perturbante. Como devem ser as acusações de excessiva colagem a António Costa. (Do outro lado do espectro ideológico, há quem lhe chame intromissão.)

 

O Presidente não comenta a teoria Montenegro do regresso ao poder do PSD sem ser por intermédio de eleições, mas a jornalista do Expresso logo recorre a fonte de Belém para classificar tal cenário de “loucura”. Porquê? Bom, porque passaria a ideia de que Passos quer “evitar ir a votos”. Eis uma afirmação típica de um comentador político, mais do que uma asserção proferida tendo em conta os procedimentos constitucionais ou a prática presidencial em contextos idênticos. Quem seria a fonte?  Um assessor político, seguramente.

 

Embora desgostoso com a situação do centro-direita, o que interessa mais a Marcelo é a sua relação com o país, e essa, como diria um irrevogável ex-governante, “está a bombar”. O capital político que vai acumulando por essa via é para usar futuramente, quando e se as coisas começarem a correr mal ao actual Governo ou ao país. Aí, ele fará “o que tem de fazer”. O Presidente da República não consegue perceber como é que a direita não compreende isto. Enfim, diria eu, nem toda a gente tem a sua prodigiosa inteligência. Por outro lado, sempre ouvi falar na “direita inteligente”, o que pressupõe a existência de uma direita estúpida. Em todo o caso, para os mentecaptos ou para os menos familiarizados com subtilezas, Henrique Monteiro, na última página do mesmo jornal, tratou de pôr as coisas preto no branco: “Há quem entenda que ele dá, em excesso, a mão a António Costa. É certo, é verdade. Mas, por cada mão que lhe dá, ganha capital para lhe dar (perdoe-se o plebeísmo) um pontapé. Se Costa ultrapassar um limite que Marcelo invisivelmente traçou, ver-se-á em maus lençóis”.

 

Bem vistas as coisas, o centro-direita tem motivo para rejubilar. Contemplem, pois, a Primavera marcelista reinventada: enquanto coopera com a esquerda, Marcelo deixa a porta aberta para a direita. Mas só porque Passos Coelho não o hostilizou – catavento não é reles nem vil. Se assim não fosse, o Presidente ter-lhe-ia fechado a porta. Com estrondo, mas com a delicadeza intrínseca à sua esmerada educação no seio da elite lisboeta do século passado. Porventura, também com açúcar e com afecto.

BRUNO, CAVACO E TRUMP - TRIANGULAÇÕES

Março 07, 2017

J.J. Faria Santos

O reeleito presidente do Sporting, Bruno de Carvalho, com a sua habitual magnanimidade e elegância, proclamou tonitruante: “Bardamerda para todos os que não são do Sporting”. E chamou ao palco a família para com ele festejar a vitória. Isto espoletou na minha memória a evocação do gracioso discurso de Cavaco Silva, na sua reeleição enquanto Presidente da República, ajustando contas (perdão, prestando contas) com quem o criticara. Queixou-se de que os adversários tinham feito uma campanha de “calúnias, insinuações e mentiras”, e instou a comunicação social a revelar o nome dos responsáveis pela “campanha suja”. Curiosamente, também ele, no início do seu primeiro mandato, rumou ao palácio de Belém acompanhado pela família.

BUZZFEED.png

                                                    Fonte: Buzzfeed.com

 

O jornal Independent comparou Bruno de Carvalho a Donald Trump. Em causa está o perfil populista, o gosto pelo confronto e a vontade de tornar o clube “great again”. Quanto ao líder do mundo livre, acabou de comunicar via Twitter que o seu antecessor, Barack Obama, tinha colocado sob escuta os telefones do seu escritório na Trump Tower. O Presidente dos EUA tem-se gabado de já lhe chamarem o “Ernest Hemingway do Twitter”, mas pessoalmente, e tendo em conta as horas que escolhe para tuitar, duvido que a actividade de desobstrução do trânsito intestinal seja suficientemente inspiradora para o alcandorar a tais píncaros. A seu favor, e ao contrário do que ocorreu com um presidente europeu, reconheçamos que não precisou de recorrer a qualquer assessor para acusar de forma irrealista, tosca e sem provas um adversário político de o ter mandado vigiar. Mérito duvidoso, é certo, mas ainda assim mérito.

Mais sobre mim

foto do autor

Subscrever por e-mail

A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.

Arquivo

  1. 2024
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  1. 2023
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  1. 2022
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  1. 2021
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  1. 2020
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  1. 2019
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  1. 2018
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  1. 2017
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  1. 2016
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  1. 2015
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  1. 2014
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  1. 2013
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  1. 2012
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  1. 2011
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
Em destaque no SAPO Blogs
pub