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NO VAGAR DA PENUMBRA

NO VAGAR DA PENUMBRA

VIOLÊNCIA, PROPAGANDA E DEONTOLOGIA

Maio 27, 2015

J.J. Faria Santos

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                                    Imagem: courtesy of www.bertc.com

 

Segundo o Expresso, acontece que o subcomissário Filipe Silva, protagonista da agressão à bastonada de um adepto benfiquista, “se excede com demasiada frequência”. No rescaldo do escândalo, ter-se-á refugiado na casa do pai, de onde não sai, e, nas palavras de um amigo ao jornal, estará com uma “grande depressão” e “parece um vegetal”. Apetece dizer, com a mesma dose de insensibilidade com que ele exibiu a sua prepotência e confundiu autoridade com autoritarismo, temos pena mas a debilidade emocional agora propalada não nos comove nem diminui a nossa indignação perante a brutalidade sem proporção nem justificação.

 

O voto consciente é o voto informado. Quão precioso não é sabermos, graças à grandiosa, sagaz e equilibrada (sim, estou a recorrer à ironia, arte difícil e susceptível de gerar equívocos…) biografia de Sofia Aureliano, que Pedro Passos Coelho tem uma “casa decorada sem a tirania da estética ou das novidades estilísticas”, que não se escusa a estender a roupa e que se esmera a confeccionar papos-de-anjo pelo Natal. Pessoalmente, lamento que este mestre da culinária (ou da pastelaria) não se dedique ao bolo-rei que poderia ofertar ao mais alto magistrado da nação. Sem brinde, para minimizar o risco de engasganço. E quão relevante é saber que as cadelas Peluche e Olívia, em vez de latir, demonstram “entusiasmo sonoro”.

Já Laura Passos Coelho admite que ainda sente “borboletas na barriga” quando o marido lhe telefona de surpresa com um convite para jantar fora. E em tom confessional, confrontada com uma doença do foro oncológico, assume ter “muito medo de morrer”. Em Janeiro de 2015, sobre este assunto, o primeiro-ministro emitiu um comunicado onde afirmava: “Dado que se trata de um assunto privado, que apenas diz respeito à minha família, peço também que essa reserva de privacidade continue a ser respeitada”. É difícil persistir na sustentação desta tese depois da publicação deste livro, mas, para que não haja dúvidas (ou adensá-las ainda mais), Passos Coelho surge em discurso directo, na obra, a esclarecer: “Não gosto de dar a ideia de poder estar a manipular ou a utilizar o sentimento das pessoas em favor de um determinado objectivo”. Hum…quem é que disse “em política, o que parece é”? (Por favor, não perguntem a Sofia Aureliano.)

 

No Facebook, no âmbito do grupo Magistrados Unidos VIP, a juíza Fernanda Sintra Amaral congratulou-se com a prisão de José Sócrates escrevendo que “há dias perfeitos”. O procurador Fraga Figueiredo admirou-se com o “corrupio” das visitas e interrogou-se se estariam “todos de rabo preso”. A juíza Margarida Menezes Leitão achava que “o que ele queria sem dúvida era destruir papelada comprometedora e avisar pessoas para tarem sogaditas”, e expressava o desejo pungente de ouvir as “gravações” das escutas.

Embora considerando que “a forma de expressão em causa não respeitava os princípios éticos e deontológicos que devem nortear os magistrados”, Joana Marques Vidal votou contra a instauração de um inquérito por parte do Conselho Superior do Ministério Público, optando a Procuradoria-Geral da República por criar um núcleo de deontologia para sensibilizar os procuradores. Que tipo de selecção é feita e que tipo de formação é ministrada a magistrados para que eles necessitem de cursos intensivos de deontologia para perceber como é ofensivo e pouco cívico congratularem-se com a prisão de um suspeito, tecer considerações abusivas acerca das suas motivações, ou teorizar de forma escarnecedora sobre as manifestações de solidariedade por parte dos amigos do detido? Como escreveu no Público, na edição de 20/05/2015, o juiz desembargador jubilado Narciso Machado, “A praxis das magistraturas não pode ser instrumento de arremesso político e muito menos de aproveitamento de um ato de soberania, que é uma sentença ou despacho jurisdicional, para fazer comentários despropositados ou de cariz político, indo para além da aplicação do direito aos factos provados e da respetiva fundamentação jurídica”.

 

ELITERÁRIO

Maio 20, 2015

J.J. Faria Santos

Na Vanity Fair de Maio, Christopher Buckley informa-nos que “aos 84 anos, tendo escrito mais de 40 livros e ensinado Literatura em Yale durante 59 anos”, Harold Bloom acaba de escolher, na sua obra mais recente, os 12 escritores americanos de eleição, que são: Walt Whitman, Herman Melville, Ralph Waldo Emerson, Emily Dickinson, Nathaniel Hawthorne, Henry James, Mark Twain, Robert Frost, Wallace Stevens, T. S. Eliot, William Faulkner e Hart Crane. Como nota Buckley (que acha que esta escolha vai irritar as feministas e os multiculturalistas, e também a comunidade gay por causa de algumas considerações que ele tece a propósito de Whitman), estão todos mortos, são todos brancos e, com uma única excepção, do sexo masculino. Interrogado pela Time, Bloom diz já não se incomodar com o criticismo e acusa os seus detractores de formarem uma espécie de “Escola do Ressentimento”.


Ele, aliás, é desde há muito tempo um persistente algoz do establishment universitário americano (“A vasta maioria dos universitários sempre foi uma mistura de impostores, atrasados mentais, preconceituosos e líderes de claque” – entrevista ao Público em 26/05/2001), bem como um demolidor do politicamente correcto (“Agora temos obras-primas de lésbicas esquimós …Vão dizer muito bem de poemas terríveis, apenas porque são escritos por lésbicas de Cabo Verde” – idem).


Em entrevista ao Expresso sensivelmente na mesma altura, antecipando a sua participação numa conferência em Portugal e o recebimento do Doutoramento Honoris Causa na Universidade de Coimbra, Harold Bloom considerou Pessoa “um dos maiores poetas do século XX”, ao nível de um T. S. Eliot, de um Lorca ou de um Valéry e admitiu não conhecer “outro romancista vivo tão talentoso” quanto José Saramago. Enumerando ainda os que considerava os “melhores romancistas americanos vivos” – Thomas Pynchon, Don Dellilo, Cormack McCarthy e Philip Roth – , acrescentou que “nenhum deles e[ra] tão extraordinariamente versátil como Saramago”.


Escritor falhado, com apenas um romance editado, que teve de pagar ao editor para evitar uma segunda edição e do qual, se pudesse, faria desaparecer todas as cópias existentes, disse à Time que o acto de ler é “elitista” e que o que o qualifica como crítico literário é “a sua paixão incrível, o seu amor feroz pelo verdadeiro esplendor do sublime”.

UMA AVENTURA NO HIPERMERCADO (CENAS SOLTAS) II

Maio 13, 2015

J.J. Faria Santos

Há um perfume a Almodóvar no ímpeto com que ela percorre os corredores do hipermercado com o folheto das promoções na mão e o cabelo apanhado num rabo-de-cavalo a baloiçar. Também ajuda que ela tenha algumas semelhanças com Rossy de Palma. Sozinha (quase sempre), ou acompanhada por uma adolescente (filha?), é vê-la localizar os produtos e atirá-los para o carro sempre em ritmo elevado. Quase parece alucinada (enfim, estou a exagerar…), concentrada, talvez. Na caixa, enquanto aguardo a minha vez, já não me parece tão enérgica a recolher os bens que se prepara para pagar. Bom, até uma frenética personagem almodovariana precisa dos seus momentos de descompressão…

 

Não estou certo que seja um grande avanço civilizacional, ou uma conquista do feminismo, mas é apreciável a quantidade de homens que se aventuram nas compras de mercearia. Atraídos pela secção de ferramentas, de produtos para o carro ou pelas promoções dos packs de cerveja? Entusiasmados por uma independência recém-adquirida na confecção dos alimentos, numa altura em que todos os homens têm a ambição de ser chefes de cozinha? Não importa. Seja na versão lobo solitário entusiasmado com a promoção do Monte Velho, na de marido adorável que acompanha a mulher, que se esmera em vão ao tentar sossegar a criancinha a berrar a plenos pulmões encavalitada no carrinho de compras, seja ainda no papel de jovem pai com ar enfadado, enquanto o filho, dois passos atrás dele, admira a miniatura de Ferrari que acabou de extorquir graças à ameaça de beicinho.

 

São uma fonte de irritação. Que tenho muita dificuldade em disfarçar. São aquelas pessoas que estacam em frente a um produto e ali ficam a adorar o bezerro de ouro, bloqueando a passagem com o carro das compras. Quase sempre se desfazem em desculpas quando entoo um “Dá-me licença?”. Recebem a delicadeza com estranheza. Como se esperassem um rancoroso “Deixe-me passar!”, ou ser abalroadas com alguma brutalidade. É assim tão difícil encostar o carro para que ele não constitua um impedimento à circulação?

 

Os saltos parecem demasiado altos, a saia demasiado curta. Parece excessivamente produzida para vir às compras. Estará arranjada para um compromisso profissional ao fim da manhã ou acabou de chegar de uma longa jornada pela noite? Cruzámo-nos num primeiro corredor. Passo para o seguinte. Detenho-me numa minuciosa ponderação em frente aos desengordurantes para a loiça. Concentrados e desconcentrados. Desisto. Faço uma inflexão para a esquerda e estaco em frente aos detergentes para sanitários. Pego em dois ou três embalagens de gel com lixívia de marca branca, produto que, nessa manhã, parece ter tido bastante saída. Quando regresso aos produtos para a louça, noto, pelo canto do olho, que ela está a tentar alcançar as escassas embalagens de gel que ainda restam. Os saltos não são suficientemente altos para a impulsionar, a saia sobe mais uns dedos com o movimento. Ofereço ajuda. Entrego-lhe um exemplar. “Estava a ver que não deixava nenhum para mim”, diz ela, sorrindo, enquanto me pede mais um. “Estou certo que existem mais em armazém”, retorqui. Agradeceu, e eu acedi ao mundo maravilhoso dos limpa-vidros, enquanto ela se eclipsava para o corredor dos frescos.

O ESTADISTA

Maio 05, 2015

J.J. Faria Santos

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                  "O Candidato" de Thomas Hart Benton (Courtesy of www.bertc.com)

 

Tal como a pescada, o estadista antes de o ser já o era. A comparação justifica-se até tendo em conta o seu carinho pelas peixeiras. E pela lavoura e pelos reformados e pelos contribuintes…De facto, tirando os momentos de camisa desabotoada quase até ao umbigo (um fã do estilo Tom Ford?), mesmo em momentos de lazer ou informalidade a sua indumentária e o seu porte perpetuavam a imagem do homem de Estado, algures entre o lorde inglês e o abastado proprietário rural.

 

Como destacada voz do quarto poder, nunca se coibiu de apreciações definitivas e lapidares: Cavaco tinha “dias de imitação de ditador”, Durão Barroso “não é dado à sinceridade”, Catroga era apelidado de “cobarde” e “sonso” e Dias Loureiro “o ministro mais desperdiçado do Governo” (premonitório…no século seguinte, Passos Coelho viria a defini-lo como um “empresário bem-sucedido” que sabe que para “vencer na vida” temos de “ser exigentes, metódicos”). Em Janeiro de 1993, no primeiro acto da peça Irrevogável, escreveu o estadista: “Se há uma certeza pessoal que eu posso divulgar é a de que não tenho a menor intenção de me submeter a votos”. Partindo do princípio que jamais lhe passaria pela cabeça aceder ao poder por meios violentos e à margem do sufrágio universal, somos forçados a concluir que insondáveis mas ponderosas razões de Estado ditaram que ele se visse forçado a abjurar esta declaração.

 

Eurocéptico primeiro, eurocalmo depois, o estadista construiu um discurso político escolhendo nichos de mercado eleitoral, a quem brindava com uns sound bites que almejavam a espontaneidade mas tresandavam a dichote ensaiado frente ao espelho. Em nome da ambição, sacrificou a coerência ao tacticismo. Cortejou o radicalismo e abraçou a demagogia. É irresistível ponderarmos se isto se deve à convicção por ele expressa de que “os portugueses comovem-se com pouco e deixam-se enganar depressa e bem”.

 

No final da sua passagem pelo Ministério da Defesa, o estadista intuiu a necessidade de construir um acervo documental que preservasse para memória futura o seu engenho e arte, pelo que ao princípio da noite de um sábado tratou de permitir o acesso de uma empresa privada ao edifício do Ministério para digitalizar 61 893 páginas de documentos. Desconhecemos se esta preocupação o assolou no momento do segundo acto da peça Irrevogável, mas sabemos que, quando Passos Coelho lhe disse que ele estava a pôr em causa o país com o pedido de demissão, o estadista proferiu um, imaginamos, lancinante “oh, Pedro!”. Com esta acusação, o Obama de Massamá fez despertar no Churchill lusitano o seu espírito de missão e o seu insuperável patriotismo. Sim, podemos completar a legislatura, nem que seja à custa de sangue, suor e lágrimas!

 

No século passado, na sua pele de jornalista/analista político, o estadista concluía que “falar verdade, só a verdade e a verdade por inteiro, e[ra] um sonho difícil em política”. O que torna compreensível que quando, face às dúvidas manifestadas pela troika em relação a uma medida que implicava uma redução na receita do IVA, o secretário de Estado dos Assuntos Europeus assumiu, perante o estadista, ter-lhes mentido, este tenha disparado um sonoro “Óptimo”. Quando alertado para o facto de daí a alguns meses a falsidade ser detectada, o Churchill lusitano exclamou: “Oh, Luís, a oitava avaliação é daqui a três meses, eu quero é fechar a sétima, pel’amor de Deus!”.

 

“A ‘estabilidade’ serve para quê? Não serve, seguramente, para ter o país em sobressalto e a sociedade em revoltas contínuas”, escrevinhava, em 1994, a propósito do estertor do cavaquismo, o estadista. Que, consta, se demitiu por SMS. E que agora propõe a renovação da coligação porque acha “mais seguro entregar o poder a partidos que por natureza estão mais perto da economia real”. Tal como os seus líderes, presume-se. Que pode estar mais perto da “economia real” que a experiência de liderar uma ONG com vocação para captar fundos europeus ou ser consultor numa empresa que ambicionava formar técnicos camarários para aeródromos municipais? Ou ter sido co-fundador do Instituto de Estudos Políticos e ter dirigido um centro de sondagens?

 

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