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NO VAGAR DA PENUMBRA

NO VAGAR DA PENUMBRA

NAOMI, PROUST E O IMPÉRIO

Abril 29, 2015

J.J. Faria Santos

Talvez pareça desajustado (porventura sacrílego tendo em conta o estatuto canónico de Proust) aplicar a Naomi Campbell as palavras escolhidas pelo escritor para sumarizar o look da senhora Swann: “Sentia-se que ela não se vestia apenas em função da comodidade ou do enfeite do seu corpo; andava envolvida na toilette como no aparato subtil e espiritualizado de uma civilização.” Mas o facto é que, ao vê-la desfilar pelo plateau da série Empire, com as suas gloriosas maças do rosto e o seu distintivo sotaque britânico, exibindo o seu talento intacto e inato para o conflito, não pude deixar de imaginar, de igual modo, que de Naomi se poderia dizer o mesmo que os rapazes que Proust citava: “A senhora Swann é toda uma época, não é?”.

Sobrevivente em grande estilo de uma era de excessos, Naomi renasce em modo cougar, seduzindo o filho do magnata da indústria discográfica protagonista da série. Pode um certo instinto predatório corresponder a uma ilusão de infusão de juventude sempre condenada ao fracasso, porém, quando executado com panache, separa a distinta mulher madura da tonta envelhecida. E coragem, bem o sabemos, nunca lhe faltou, mesmo que ao serviço do destempero e da raiva mal direccionada.

Claro que o encanto deste género de deusas é reinarem nos ecrãs ou nas páginas das revistas, protegidas pela inacessibilidade ou pela exposição calculada. Doutro modo, incapazes de preservar a distância, sucumbiríamos à tentação da proximidade para concluir da crueldade da visão da diva ao natural. Nada de particularmente grave, pois, como explicou Proust: “Para tornar a realidade suportável, somos todos obrigados a alimentar em nós algumas pequenas loucuras.”

 

(Citações de Marcel Proust extraídas de “Em busca do Tempo Perdido – À Sombra das Raparigas em Flor”, tradução de Pedro Tamen, edição Círculo de Leitores)

A VIDA É DEMASIADO CONTEMPORÂNEA.

Abril 22, 2015

J.J. Faria Santos

A dada altura, numa cena do filme Cosmopolis de David Cronenberg, Juliette Binoche desabafa para Robert Pattinson: “A vida é demasiado contemporânea”.

Eis uma síntese apropriada da condição da vida moderna. Na verdade, tenho com frequência a sensação de que vou ser atropelado pelo futuro, ou permanecer na estação a vê-lo passar. Convencido de estar aberto à novidade e à inovação, dou comigo, estupefacto, a exclamar angustiado (mas não muito…): “Socorro! Serei conservador!?”.

Sobretudo a overdose de propostas de gadgets, a galopante oferta de tecnologias de futuro (ou de um futuro de tecnologias), a febril necessidade de actualizações de toda a sorte, despertam em mim um intuitivo movimento de resistência. Acho preferível que cada um de nós absorva o futuro com alguma moderação. Que não descartemos o que de válido adquirimos em nome de um deslumbramento passageiro ou de uma necessidade induzida.

É, provavelmente, uma questão de ritmo. Sempre achei que o frenesim, embora proporcionando uma ilusão de intensidade, travava a fruição.

A AMEAÇA

Abril 14, 2015

J.J. Faria Santos

Billie-Holiday-Meme-Card-01.jpg

Uma ameaça? Bom, talvez uma intimação, um desafio ou uma proposta de investimento. É preciso investir para colher dividendos. E é também um jogo. Com ganhadores e perdedores. Quando os dois ganham é o jackpot. E tem vários níveis. O mais básico coincide com um encantamento inicial. Depois, há que negociar a sua natureza, que percentagem de capital emocional cada um investe e resistir contra o tempo e a erosão que a trivialidade do quotidiano propicia.
A ameaça que Billie Holiday via no amor seria resultado da descrença. Demasiadas apostas, demasiadas derrotas. Melhor o baptismo da chuva purificadora que as juras de amor levadas pelo vento. Baixar as expectativas para iludir as probabilidades. Mas, mesmo assim, a voz que entoava I’m a fool to want you também suplicava For heaven’s sake let’s fall in love. Antes os enlameados caminhos da perdição que o deserto árido da renúncia.

 

Frank Sinatra foi um dos autores, juntamente com Joel S. Herron e Jack Wolf, de I’m a Fool to Want You. Adam Gopnik assume-se no site da New Yorker como um “fanático” de Sinatra (The Pure Artistry of Frank Sinatra, 8 de Abril de 2015). Gaba-lhe a subtileza da interpretação, a facilidade, a inteligência. Diz que o seu estilo de interpretar é o de alguém que expõe confidências em vez de propagar emoções. Traça o paralelo com Judy Garland, entre a força das lágrimas e a pungência do lamento (“Judy Garland is all vibrato and tears; Sinatra is all legato and regrets.”)
O fraseado e o tempo de Sinatra não parecem muito distantes do de Billie Holiday, sobretudo nos temas daquilo que Gopnik chama de sad Sinatra, por oposição ao swinging Sinatra. Não sabemos se ele via no amor uma ameaça, mas apostamos que o mais provável é que ele fosse a ameaça.

 

De ressaca amorosa, demasiado refém das cicatrizes para confiar, ela diz para ele não se afastar, embora não se entregue incondicionalmente à fruição de uma nova paixão. Sente o perigo, porque, como ela canta mais à frente, as pessoas podem atraiçoar-nos pelas costas. Embora reconheça a bondade da maior parte dos mortais. Mas também há profissões de fé no amor e apelos à renovação dos cenários da paixão. Porque estamos demasiado confinados às quatro paredes de uma habitação (“watching TV or lost in technology”).
Com excepção de DANGEROUS ( um flirt com a musica de dança, com pozinhos de disco sound) Into Colour é um gloriosa colecção de baladas retro, com reminiscências dos universos de Burt Bacharach, The Carpenters ou Rita Coolidge, interpretadas com competente sobriedade. Ao décimo primeiro tema Rumer já se sente abençoada porque o amor vem a caminho. E, longe de ser uma ameaça, é um pretexto para o júbilo.

 

O ambiente é pós-apocalíptico. Ruínas, detritos, destruição e abandono. Deslocam-se furtivos um rato, uma aranha, um lobo. Uma mulher determinada a sobreviver encontra um suplemento de força nas fotografias dos objectos do seu afecto presumivelmente desaparecidos. Descarrega a raiva a golpes de taco de golfe e frustrada abandona o telefone preso pelo fio. Pelo fio da sua raiva. Um homem observa-a pela mira da sua arma. Serão duas almas perdidas numa cidade-fantasma até se encontrarem para um tango heterodoxo, porque “num mundo reduzido a pó, o que sobra é o amor” e a maior das ameaças é a sua ausência. O soberbo vídeo de GHOSTTOWN tem realização de Jonas Akerlund e apresenta Terrence Howard a contracenar com Madonna.

 

Como devemos lidar com a ameaça do amor? Como uma inevitabilidade. Sempre que possível imunes a desmedidas expectativas ou a rancores ou amarguras persistentes. Passado o período de arrebatamento ou de “luto”, conforme as circunstâncias, regressemos ao business as usual. Como explicou o mestre Leonard Cohen, os foguetões subiram pelos céus, os livros sagrados foram abertos e examinados e os médicos trabalharam dia e noite, mas não há cura para o amor.

 

DISTRIBUIÇÃO, LDA

Abril 08, 2015

J.J. Faria Santos

O que aconteceu aos banqueiros que quase conduziram Wall Street ao colapso em 2008 com consequências devastadoras para a economia mundial? William D. Cohan tentou sistematizar uma resposta para a Vanity Fair (The Wrecking Crew – Abril 2015). Jimmy Cayne perdeu cerca de um bilião de dólares quando o valor das suas acções do Bear Stearns caiu para um valor próximo dos 2 dólares, mas semanas mais tarde conseguiu realizar 61 milhões de dólares, à cotação de 10 dólares a acção, no âmbito da compra efectuada pelo JPMorgan. Stan O’Neal, ex-CEO do Merril Lynch, foi despedido com um pacote de indemnização a rondar os 161,5 milhões de dólares. Ken Lewis, do Bank of America, recebeu compensações de diversa ordem que ascenderam a 83 milhões.
Uns recusaram a abordagem do repórter. Foi o caso do ex-CEO do Lehman Brothers, Dick Fuld, que na estimativa de um advogado que trabalhou na empresa em matérias de regulação terá recebido remunerações, entre 2000 e 2007, no montante de 529,4 milhões de dólares. Já Gary Cohn, presidente do Goldman Sachs, lamenta que o banco se tenha transformado, como escreve Cohan, num exemplo de “comportamento pouco ético nos anos que se seguiram à crise”. Cohn diz que agora a empresa reflecte mais acerca da sua “marca” e da sua “reputação”.
Para Jamie Dimon, chairman e CEO do JPMorgan Chase, “o dano causado à reputação do bancos pela crise financeira demorará uma geração a reparar”. E chega ao ponto de censurar veementemente as compensações que os banqueiros que foram despedidos receberam, exemplificando que se o seu banco tivesse falido os seus responsáveis deviam devolver o dinheiro auferido, pelo menos, nos últimos cinco anos. Não sabemos se este desassombro nas declarações terá sido influenciado pelos mais de 35 milhões de dólares em multas e penalidades que o JPMorgan pagou desde Junho de 2011. Certo é que, no entretanto, Dimon viu o seu ordenado quase duplicar (para 20 milhões) e o valor das suas acções do banco ascender a 480 milhões de dólares.
O que é que aconteceu aos banqueiros? Como nota Graydon Carter em editorial na mesma Vanity Fair, “passaram sete anos desde que Wall Street fez ajoelhar a economia mundial” e nenhum foi preso.

 

Rana Foroohar (Time – edição de 6 de Abril) apelida de “miragem do mercado” a ideia de que a cotação da acção de uma empresa reflecte o seu valor. O facto é que, afirma ela, a cotação da acção é “uma distracção de curto prazo”, dado que “o verdadeiro valor é criado com o decorrer do tempo”. Esta fixação com a cotação das acções tem efeitos perniciosos, já que, preocupados com a reacção dos mercados e tendo em conta os seus próprios bónus (grande parte deles sob a forma de acções da própria empresa), os responsáveis apostam numa gestão para os resultados trimestrais em detrimento de gastos que induzam a inovação, mas com efeitos mais diferidos no tempo. Foroohar defende que muitas vezes as empresas aumentam as suas margens de lucro e vêem as suas acções serem valorizadas, não porque a economia está a crescer e o volume de negócios aumentou, mas sim porque optaram por cortar nos custos e no investimento em novas instalações, ou em pesquisa e desenvolvimento. E cita o professor de economia William Lazonick, quando ele afirma que “passámos de um mundo em que as empresas retinham e investiam os seus lucros para outro em que se despede o pessoal e se distribuem esses lucros”. Conclui taxativamente a colunista da Time: “Ninguém – nem os economistas, nem os CEO’s e nem os políticos – acha que isto é benéfico para o crescimento real da economia”. É caso para perguntar: deste consenso não nasce a premência de alterar procedimentos?

 

Como é que se comportaram as empresas do PSI-20 desde 2008? Segundo um artigo do Expresso (edição de 28/03/2015) os seus accionistas receberam mais de 13 mil milhões de euros. A EDP foi a campeã dos dividendos – cerca de 4,4 mil milhões, com a PT SGPS (3 mil milhões) e a Galp (1,4 mil milhões) nos restantes lugares do pódio. A distribuição ocorreu em anos que geraram lucros e tendo em conta o montante desses lucros, certo? Errado. Houve quem distribuísse lucros num ano em que teve prejuízos, da mesma forma que houve quem distribuísse quase o triplo do lucro obtido num dado exercício, socorrendo-se das reservas. Parece que, explicam os especialistas, não distribuir dividendos tem um impacto negativo. Comentou, incisivo e certeiro, Francisco Louça no seu blogue no Público: “Durante estes anos, o endividamento aumentou e o investimento caiu a pique. Mas as empresas usaram mais de metade dos rendimentos para pagar dividendos aos accionistas, mesmo quando tinham prejuízos. (…) Chama-se a isto viver acima das suas possibilidades. E é a história da burguesia portuguesa.”
Fossem os conselhos de administração destas empresas compostos por uma certa “raça de homens que gosta de pagar aquilo que deve” (desde que exista uma notificação, claro…) e o fluxo de dividendos teria sido significativamente inferior. Seria suficiente para redimir ou regenerar a burguesia portuguesa?

 

INSURREIÇÃO ANTES DA RESSURREIÇÃO

Abril 01, 2015

J.J. Faria Santos

Ele não era um polícia das mentes; privilegiava a cordialidade que devia presidir ao relacionamento interpessoal em detrimento da sanha para expurgar os pensamentos ditos impuros. Perante a fraqueza humana, em vez do julgamento severo e punitivo, escolheu a compaixão. Protegeu os marginais e os marginalizados. Combateu discriminações. Não temeu enfrentar os poderosos, mas não os elegeu, à boleia do populismo ou da intolerância, como inimigos a abater. Mesmo assim, eles poderão tê-lo receado como instigador de motins ou levantamentos. Ao desafiar a ortodoxia da hierarquia religiosa e, simultaneamente, ao desencadear na potência ocupante romana o receio da rebelião política, construiu a via-sacra que o conduziu à cruz. Filho de Deus ou profeta freelancer? Um homem bom e eloquente ou um curandeiro dotado? Se nos abstrairmos das profissões de fé e das fontes históricas, resta-nos o legado de um exemplo. E que poderoso que ele é. Mostra-nos a validade da insurreição que ampara os fracos mas não prescinde de ensinar os fortes a evitar a tirania.

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