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NO VAGAR DA PENUMBRA

NO VAGAR DA PENUMBRA

ROLETA RUSSA - O PRISIONEIRO 44

Novembro 26, 2014

J.J. Faria Santos

O terramoto teve o seu epicentro no aeroporto da Portela e é elevada a probabilidade de que réplicas ocorram ao longo das próximas semanas e meses. A detenção para interrogatório do ex-primeiro-ministro José Sócrates, associada à gravidade dos indícios invocados, cria um cenário de roleta russa em torno do Estado de Direito, do sistema político e do próprio regime democrático.
Salvaguardada a presunção, quer da inocência dos indiciados, quer da boa-fé dos titulares do poder judicial, e confiando a priori na probidade dos que desempenham ou desempenharam altos cargos políticos e na competência e bom senso de quem tem que investigar e julgar, só nos restará, no final deste processo, tirar uma terrível ilação: ou os portugueses elegeram, durante dois mandatos, para chefe de Governo uma personalidade indigna de exercer altos cargos públicos, ou um terrível erro judiciário (ou uma investigação canhestra ou manifestamente equivocada) enlameou um cidadão, assassinou um carreira política e desferiu um golpe de consequências imprevisíveis no sistema político-partidário.
Os primeiros sinais não são particularmente encorajadores. O modus operandi foi o do costume: detenção (nocturna) para interrogatório, televisões de pré-aviso prontas a filmar viaturas a alta velocidade, utilização dos orgãos oficiosos (Sol, Correio da Manhã ) para revelar dados em segredo de justiça, propiciando aquilo que Clara Ferreira Alves no Expresso online apelidou de “linchamento público”, medidas de coacção aparentemente desproporcionadas.
O gatilho foi premido, o tambor rodou, a bala saiu disparada em direcção ao alvo em movimento. Será certeira e justa ou fará ricochete?

BOAS COISAS MÁS E COISAS PURAMENTE MÁS

Novembro 19, 2014

J.J. Faria Santos

Contrariamente ao que sucedeu com Sete Palmos de Terra (com lugar garantido no cânone televisivo), nunca fui um espectador fiel da criação seguinte de Alan Ball, True Blood. Mesmo tendo em conta as possibilidades romanescas do universo vampiresco, com a evidente alusão às fricções geradas pelos estilos de vida das minorias ou à disseminação de fenómenos de contágio, ficou sempre abaixo das expectativas. Porém, o que me chamou de imediato à atenção foi o soberbo genérico, uma montagem frenética de imagens algo caóticas, representando desde cerimónias religiosas a animais em decomposição, acompanhadas por um irresistível tema musical. Os primeiros cinco versos do tema Bad Things, composto e interpretado pelo americano Jace Everett, são um autêntico compêndio de sedução, ansiedade e desejo: “When you came in the air went out / And every shadow filled up with doubt /I don't know who you think you are / But before the night is through / I wanna do bad things with you”. Reparem no impacto: uma pessoa entra e outra fica sem fôlego. As dúvidas (agir ou não agir) adensam-se nas sombras, porque não se conhecem. Mas antes que a noite se fine, coisas más vão acontecer entre os dois. Boas coisas más.

 

Coisas más prometeu António de Albuquerque fazer a Filipe Alves. “Vou-te aos cornos”, vociferou ele. “Vais parar a um hospital”, ameaçou. Mudámos de pecado capital. Aqui não é a luxúria que está em causa, mas a ira. Abespinhado por um artigo que o jornalista do Diário Económico escrevera questionando as opções do Governo, Albuquerque proferiu estas ameaças, entremeadas com insultos em vernáculo, caso Alves persistisse em meter a sua “mulher ao barulho”. Perante este exemplo de pundonor cavalheiresco, protegendo a acção e o legado da governante, é caso para dizer, actualizando uma frase do passado, quem se mete com a ministra das Finanças, leva do marido!

 

Ventos maus sopram do Leste, diz-nos George Soros, gritando: Acorda, Europa (The New York Review of Books, edição de 20 de Novembro de 2014). Alerta que a Rússia representa “um desafio fundamental aos valores e princípios sobre os quais a União Europeia foi originalmente fundada”, e que está a tirar partido da “relutância” que os Estados Unidos e a Europa demonstram em ser envolvidos num conflito militar. Soros explica que o argumento de que negociando com Putin se conseguirá evitar a deflagração de um conflito militar não tem base factual, dado que ele “recorreu repetidamente ao uso da força”, e fá-lo-á de novo a menos que enfrente resistência. Está na hora, diz ele, de os membros da União Europeia “acordarem e comportarem-se como países indirectamente em guerra”. 25 anos depois da queda do muro de Berlim, uma nova barreira ameaça erguer-se, uma nova cortina de ferro.

 

Angelina Jolie é boa. A sua actividade humanitária ao serviço das Nações Unidas já contabiliza mais de 50 missões, sendo particularmente útil a sua enorme capacidade de criar empatia. A que se junta um trabalho sério de preparação: estuda os assuntos e aconselha-se com peritos da organização e especialistas em política internacional. Quem o diz é Janine di Giovanni, a jornalista que a entrevistou para a edição de Dezembro da Vanity Fair, e que a interrogou acerca de uma futura carreira na política. Embora desvalorizando a questão, a resposta não foi no sentido da exclusão liminar, alegando que na actividade humanitária tem de se ter em consideração a política. No final do artigo, a jornalista faz referência a um encontro de Jolie com António Guterres, apontado como um possível futuro secretário-geral das Nações Unidas (“…a man some believe has a chance to be the next U. N. secretary-general”).

OS LOBOS E OS COIOTES

Novembro 12, 2014

J.J. Faria Santos

John_Nieto_wolf_drinking_water_by_moonlight.jpg                            "Wolf Drinking Water By Moonlight" de John Nieto

                                            (Courtesy of www.bertc.com)

 

Não possuo conhecimentos de zoologia, muito menos dados de observação empírica, que me permitam confirmar a asserção que Philipp Meyer, por interposto narrador, inscreveu no seu romance O Filho : “(…) os lobos correm com as caudas ere[c]tas e orgulhosas, ao passo que os coiotes as põem entre as pernas, como cães repreendidos.” (Bertrand Editora, tradução de Fernanda Oliveira, página 39). Sei, porém, que, por regra, os lobos caçam em alcateia, raramente de forma isolada.
Um Lobo, António Lobo Antunes, concedeu duas entrevistas (ao Público e ao Expresso), a pretexto, não a propósito, do seu mais recente livro, Caminho Como Uma Casa Em Chamas, dado que, como preveniu a jornalista do diário, só falaria do que lhe viesse à cabeça. As entrevistas foram-se desenrolando entre a meditação íntima (sobre o acto da criação ou os desafios da vida quotidiana – a doença, a morte) e a enunciação do seu cânone literário ( Tolstoi era um génio, Thomas Mann é bom mas chateia-o, Musil é bom mas não gosta, afirmou ao Público).
A Isabel Lucas (Público) confessa que tem “muito pudor” em falar dos seus livros, mas isso não significa que tenha “medo da crítica” porque sabe “o que eles valem” e tem “orgulho” do seu trabalho. A José Mário Silva (Expresso) interroga-se até que ponto não tem andado, na totalidade da sua obra, “a criar uma imensa autobiografia”. Esclarece ainda que, ao escrever, nunca faz planos. E diz: “A imaginação não existe. O que existe é a memória. A maneira como rearranjamos os materiais da memória.”
Acontece que, ao Público, ele disse ter uma memória “terrível” – “Tenho uma memória péssima, lembro-me de tudo.” - , pelo que, enquanto ela não lhe faltar, não terá de recear a falta de inspiração que o deixaria sem saber o que fazer. Desamparado. Porque não gosta de “ir a bares”, nem de “estar com muita gente”. Isto fará dele um lobo solitário?

 

Quem também deu uma entrevista ao Expresso foi o Presidente da República. “Curta e limitada a dois temas”, como o próprio jornal a definiu. Eram os temas que ele queria “deixar esclarecidos”. Que isto de dar rédea solta aos jornalistas pode dar mau resultado… Sei lá, o Ricardo Costa podia lembrar-se de lhe fazer uma inquirição do género da que fez numa célebre entrevista televisiva a José Sócrates, a qual levou Fernando Madrinha a lamentar que Costa “tenha caído na tentação de fazer de cada diálogo uma zaragata e de acompanhar cada pergunta de uma opinião pessoal que os telespectadores não lhe pediram”.
E o que disse Cavaco Silva? Que é preciso “serenidade” na nossa vida política. Recorreu a terminologia clínica, censurando a esquizofrenia e a histeria políticas. (Estaria ele a pensar, por exemplo, na esquizofrenia paranóide, que é uma forma de psicose caracterizada por manifestações delirantes, em que o paciente pode escutar vozes ou, porventura, imaginar que está a ser espiado?) E frisou a importância do “estabelecimento de compromissos políticos”. Aparentemente salomónico, mandou recados para a oposição (não pode fazer “opções orçamentais que ponham em causa a competitividade da economia portuguesa”, nem afirmar “que não cumpre as obrigações internacionais”) e para a situação (as negociações para a formação de coligações governativas devem ser detalhadas para não levarem “os conflitos e as lutas partidárias para dentro do Governo”).
Já a propósito da não antecipação das eleições legislativa, critica “os políticos e articulistas” (mais um a criticar comentadores, pelo menos não os apelidou de preguiçosos…), e defende que “utilizar o instituto da dissolução para alterar a data das eleições seria uma violação do espírito da Constituição”. Apetece perguntar se o PR foi sempre um intransigente defensor dos preceitos constitucionais e, sobretudo, um infalível protector das instituições que os garantem. Um seu apoiante, Pacheco Pereira, acha que não e escreveu no Público, no mesmo exacto dia em que foi editada a entrevista de Cavaco Silva, referindo-se concretamente ao Tribunal Constitucional: “O Presidente permaneceu silencioso perante atitudes inaceitáveis de pressão e mesmo insulto sobre o tribunal, um caso de funcionamento irregular das instituições (…)”.
Longe de mim atrever-me a figurativamente equiparar Cavaco a um coiote. Era preciso ter nascido duas vezes para tal topete. Não sei também se ele rearranja “os materiais da memória”, opção virtuosa na literatura mas censurável na política. Digamos que me parece indesmentível que ele tem estado alinhado, por convicção ou por conveniência (o interesse nacional, única e exclusivamente, claro…), com os jovens lobos da sua alcateia.

 

ANJOS DISFARÇADOS, DEMÓNIOS ESCANCARADOS

Novembro 05, 2014

J.J. Faria Santos

BOOK_VP_1.jpg

                                               Imagem: VintagePrintable

 

No número 37 da Rue de la Bûcherie, muito perto da fachada sul da catedral de Notre-Dame e com vista para o Sena, num prédio construído no século XVII, um excêntrico americano, conhecido pelos seus ideais comunistas e pela frugalidade dos gastos, abriu os cordões à bolsa apenas para expandir uma monumental livraria, ponto de passagem tanto de aspirantes a escritores como de autores consagrados ( por exemplo Henry Miller, Allen Ginsberg, Julio Cortázar e, mais recentemente, Paul Auster, Martin Amis e Zadie Smith).
De acordo com familiares e amigos, George Whitman era um homem profundamente tímido, mas, por mais paradoxal que possa parecer, com uma tendência inata para a hospitalidade. Talvez por isso, no topo de uma porta no segundo andar da sua livraria, ele tenha feito inscrever uma espécie de epigrama que atribuía a Yeats (“Be not inhospitable to strangers lest they be angels in disguise”), mas que de facto é uma citação bíblica (na edição que consultei, datada de 1978 e publicada pela Difusora Bíblica, esta passagem da Carta aos Hebreus tem a seguinte versão em português: “Não vos esqueçais da hospitalidade, porque, por ela, alguns, sem o saberem, hospedaram anjos.”)
Segundo o relato de Bruce Handy, que assina um artigo na Vanity Fair de Novembro intitulado In a Bookstore in Paris… , cerca de 30 000 aspirantes a escritores foram acolhidos na livraria a troco de algumas horas de trabalho. Whitman, que faleceu a 14 de Dezembro de 2011, com 98 anos de idade, era porém dado a alterações de temperamento e a acessos de peculiaridades que, conforme exemplos citados por Handy, podiam ir desde o acto de atirar livros às pessoas, com afecto ou irritação, até à proeza de servir vinho aos convidados em velhas latas de atum em vez de copos (Anaïs Nin e Maria Callas recusaram…)
A livraria é actualmente gerida pela filha, Sylvia Whitman, e a recepção aos visitantes é também feita por Colette, a cadela mistura de labrador e collie , e por Kitty, a gata que sobreviveu ao dono, e que, no site em renovação da livraria, aparece numa soberba pose, solene e esfíngica, em cima de uma mesa. Não fosse a minha aversão a viajar, talvez motivada pela minha rendição a um pecado capital (a preguiça, obviamente, embora não seja o único…a gula também…e fiquemos por aqui…), e eu aceitaria o convite familiar, que tenho delicadamente recusado, para visitar Paris pela primeira vez, na condição de me conduzirem à Rue de la Bûcherie. E não, que fique bem claro, não iria à procura de anjos. Há, por vezes, mais grandeza nos demónios que habitam os humanos.

 

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