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NO VAGAR DA PENUMBRA

NO VAGAR DA PENUMBRA

RETRATO DO BLOGGER QUANDO CRIANÇA II

Abril 30, 2014

J.J. Faria Santos

 

A fotografia residia, amarrotada, no fundo de uma gaveta. Onde as memórias amarelecidas pelo correr do tempo devem permanecer, acessíveis mas recolhidas. Falta-me, claramente, o ar encantado do beach boy convicto. Na verdade, até pareço algo aborrecido ou nauseado. Ou então é o efeito conjugado do sol inclemente a fustigar os olhos míopes. Provavelmente, teria preferido ficar em casa. A ler, a ouvir música ou a tocar no meu piano de brinquedo. Como as minhas memórias de infância são uma nebulosa, não consigo determinar se teria sido no Natal anterior ou no próximo que eu desfrutaria de tão admirado presente, que incluía um banco para o putativo pianista se sentar. Também não sei se foi nessa altura que uma das minhas primas sugeriu que eu fosse aprender música. Nunca aconteceu. Por minha exclusiva indisponibilidade. Hoje em dia, costumo elencar, por chalaça, as três coisas que gostaria de saber fazer e jamais farei, por absoluta falta de talento, paciência ou preguiça: dançar o tango, tocar piano, falar italiano. Por vezes, permito-me uma actividade altamente recomendável mas à qual dedico o mais escasso dos tempos: sonhar. Nesses momentos de delírio consentido, acompanhados por uma serena ironia, imagino-me a tocar ao piano o I Get a Kick out of You, do Cole Porter, enquanto declamo os soberbos versos iniciais, que cito de memória: My story is much to sad to be told / But practically everything leaves me totally cold / The only exception I know is the case / When I’m out on a quiet spree / Fighting vainly the old ennui / And I suddenly turn and see / Your fabulous face. Nada como o espanto perante a beleza para nos arrancar dos torpores meditativos com vista para o ensimesmamento.

 

ABRIL EM PORTUGAL

Abril 23, 2014

J.J. Faria Santos

“Este senhor Salazar / É feito de sal e azar. / Se um dia chove, / A água dissolve / O sal, / E sob o céu / Fica só o azar, é natural. / Oh, c’os diabos! / Parece que já choveu…”, escreveu Fernando Pessoa a 29 de Março de 1935. A 24 de Abril de 1974 já se tinha dissolvido enquanto actor de poder o homem de quem Eduardo Lourenço disse que cultivava “a arte do apagamento e da obscuridade, a grande arte do silêncio”. A governar o país, Marcello Caetano, para quem a democracia era um estranho lugar, arbitrava a peleja entre os liberais e os ultras, enquanto procurava suster os ventos de mudança. No dia 25 de Abril de 1974 começou a aprendizagem da liberdade.

No princípio, era o verbo. A palavra solta, liberta da tirania dos iluminados para quem o imperativo de uma certa ordem dispensava o livre-arbítrio e justificava a opressão, a supressão e a repressão. Uma elite dirigente, que em nome da preservação do statu quo delegava em canhestros executantes a tarefa da censura, julgava poder eternizar, à conta da mansidão de uns alegados brandos costumes, a sabotagem da indignação que sucede à indignidade.

Valeu a pena. Por tudo. Mas principalmente pela palavra. Que se oferece com dúvida ou com convicção, com serenidade ou com revolta. Que se dispara à mesa do café ou nos fóruns da rádio e da TV, que se arremessa nas manifestações e que se deposita nas petições como se fosse um testemunho de cidadania. Com parcimónia ou com desbragamento. Com frontalidade ou ambiguidade. Elogiosa ou injuriosa. Valeu a pena. Nenhuma palavra dita poderá causar maior mal que o provocado pela palavra reprimida ilegitimamente. Neste como noutros domínios, porque existe um tempo justo para qualquer proclamação, todo o excesso é reparável e toda a escassez irrecuperável.

 

 

 

VALÉRIE DE FRANCE

Abril 16, 2014

J.J. Faria Santos

Um divertido artigo de A.A. Gill para a Vanity Fair de Abril ( Liberté! Egalité! Fatigué! ) defende a tese do declínio da França. No espaço de uma geração, defende o autor, “evaporou-se” a importância da cultura francesa, desafiando-nos a nomear um filme francês contemporâneo que nos tenha agradado, um pintor vivo de relevo ou um escritor de prestígio, sem contar com Michel Houellebecq, que, alega ele, “os franceses detestam”. Taxativo e impiedoso, afirma: “Incapaz de mudar, aterrorizada pela inovação, a França transformou-se nos Bourbons, que notoriamente não esqueceram nada nem aprenderam nada”.

Gill considera que as circunstâncias do affair de Hollande com uma actriz são uma boa ilustração para este estado de decadência. Todos os envolvidos se comportaram, segundo ele, com “uma trágica ausência de elegância”. Troçando das visitas de Hollande à amante (deslocava-se numa espécie de “triciclo motorizado”, no lugar do passageiro, com uns sapatos “horríveis” e um “capacete gigante”), o autor conclui: “Não é exactamente um Alain Delon, pois não?”.

Ora sucede que, dedicando-me a essa tarefa arcaica que consiste em passar os olhos pelos jornais expostos no quiosque enquanto esperava pela minha vez de ser atendido, deparei com a capa de uma revista francesa onde ao lado de Valérie Trierweiler se encontrava quem? Pois, exactamente o Alain Delon! Valérie, de quem Gill diz que “foi admitida no hospital por causa de um coração despedaçado”, parece querer emergir do lamaçal da desordem conjugal acedendo a um outro patamar de glamour. Marc Fourny, no Le Point online , dando conta do desmentido do actor em relação a uma eventual ligação amorosa, nota que se trata de uma notícia que interessa aos dois: a Delon, porque o coloca no papel de, galantemente, socorrer uma amiga perturbada; a Trierweiler, porque a devolve à ribalta no momento em que uma sua rival, Ségolène Royal, regressa ao poder.

Valérie, cujo rosto parece estar sempre na iminência de convocar toda a fúria, vai lentamente aprendendo que o desabar da determinação é quase sempre um trampolim para a recuperação da posição. À cedência, à derrocada emocional, segue-se o retomar do fôlego.  Que nada permite imaginar que esteja condicionado por uma qualquer fraqueza. Principalmente, quando se é uma mulher de carácter. Ou, mais exactamente, como disse Delon, “une belle femme de caractère”.

 

 

 

A NARRATIVA DE BARROSO

Abril 09, 2014

J.J. Faria Santos

 

                                                 Fonte: Vintage Printable

 

Eu amo Portugal.O povo português é o melhor que há em Portugal. Eu sempre fiz tudo para  ajudar o  meu país.  A começar pelo apoio ao então Governo português na tentativa de fazer passar o PEC 4. Tentámos evitar que houvesse em Portugal o anátema do resgate.

A Europa não é o problema, a Europa é parte da solução. A crise foi gerada por dívidas públicas muito grandes, que são uma responsabilidade dos governos nacionais. Não sei bem como, mas a legislatura que eu inaugurei em 2002 terminou com um crescimento da dívida em termos absolutos de mais de dezassete mil milhões de euros. Não sei bem como, mas as contas do Expresso  dizem que o peso da despesa pública no PIB ajustada do ciclo económico cresceu três vezes mais no meu consulado concluído pelo Santana Lopes que no anterior Executivo de Guterres. Não sei bem como, mas o Público  diz que de 2002 a 2004, entre transferências de fundos de pensões, perdões fiscais, titularizações de créditos, concessões de portagens e a venda da rede fixa da PT, ultrapassou-se os oito mil milhões de euros em receitas extraordinárias. Que querem que eu diga? Mea culpa? A política é a arte do possível e a ciência da sobrevivência. A responsabilidade, lamento ter de o dizer, foi, sobretudo, daquelas duas pessoas que passaram pela pasta das Finanças nessa altura, que representam uma certa classe média ou média-alta, e que, agora, assinaram um manifesto onda surge gritantemente em destaque a palavra que Portugal não pode pronunciar.

Eu nem queria dizer isto. Prezo a confidencialidade e a discrição. A modéstia assenta-me quase tão bem quanto as minhas lendárias qualidades de estratego político (que os meus inimigos confundem com ambição desmedida e carácter maleável). Mas a verdade é que estive uma hora ao telefone a convencer a sra. Merkel a dar mais tempo para Portugal e a Irlanda pagarem a dívida e para a redução dos juros. A Comissão esteve sempre do lado do abrandamento das condições. Eu sei que não é esta a ideia transmitida pela comunicação social e pelos líderes de opinião…Aquele economista, o De Grauwe, até chegou a dizer que a Comissão Europeia era um agente da defesa dos interesses dos países credores…Haja paciência! De chinês!

Mas sabem o que me reconforta nesta recta final do meu mandato? Os resultados extraordinários que Portugal tem tido, a correcção dos desequilíbrios externos é fantástica. Não obstante, eu já disse várias vezes ao primeiro-ministro que há limites para uma certa política. Mesmo de tanga, há que proteger os pobrezinhos desta enxurrada de sucesso. Mas eu não quero entrar na luta política…

Já na luta institucional…Já vos contei das três vezes que chamei o Vítor Constâncio a São Bento a propósito dos rumores acerca do BPN? Há quem diga que ele se preocupou mais em estimar défices que exercer a supervisão…Ele que se atreva a negar-me três vezes! Não é por acaso que todos os dias faço, para memória futura, o registo dos factos do dia anterior. A História assim o exige. Ocorre-me agora que terei de consultar esses registos para verificar se obtive esclarecimentos acerca do BPN nos meus anos de liderança do PSD, quer do Dias Loureiro que presidia ao Conselho Nacional, quer do Joaquim Coimbra que integrava a Comissão Política.

Mas tudo isto é passado, matéria para saudosistas incorrigíveis e arqueólogos de incoerências prontas a usar como armas de arremesso para destruir ambições ou alimentar ressentimentos. O que me interessa é o futuro.

O que eu acho que se devia pensar em Portugal é o próximo Presidente da República ser apoiado pelas principais forças políticas. Para uma situação de excepção nada como um homem normal com apoios excepcionais. Eu, francamente, não tenho qualquer intenção de ser candidato a Presidente. Nem pensar!...A menos que… não!...Enfim, só numa situação extrema (que não consigo antever, nem com toda a minha capacidade de estratego presciente) que justifique um sacrifício pela nação. Porque eu amo Portugal. Só isso me faria inflectir a decisão. A firmeza da minha decisão é tal que eu poderia apelidá-la de irrevogável.

Vou reler o The Sleepwalkers, continuar a dar entrevistas ao Ricardo Costa em cenários ricos em arte contemporânea, ter uma pausa, pensar, reflectir. Dito assim, até parece que durante o meu mandato não pensei, nem reflecti. Os meus inimigos até podem insinuar que a sra. Merkel fazia isto por mim. Mas, como diria o Octávio Machado, vocês sabem do que é que eu estou a falar… Se for mesmo necessário alguém excepcional com apoios excepcionais, se o meu país em desespero de causa me recrutar, não conseguirei dizer não. Porque eu amo Portugal. E amo a coisa fantástica que há em Portugal: o povo português.

 

(Apesar de este ser um exercício de ficção, os excertos em itálico correspondem a declarações de Durão Barroso constantes da entrevista concedida ao jornal Expresso, publicada no passado dia 29 de Março.)



A MÃO ESCONDIDA POR TRÁS DOS ARBUSTOS

Abril 02, 2014

J.J. Faria Santos

Parece existir uma vertigem de confrontação algo deslocada na generalidade dos interlocutores do ex-primeiro-ministro José Sócrates ( talvez seja útil enfatizar o “ex”, visto que a vocação de contrapoder da classe jornalística parece estender-se aos deserdados desse mesmo poder). A entrevista de Sócrates, nos idos de Março de 2013, que precedeu o seu comentário semanal, foi alvo de um pouco comum fact-checking  por parte de vários orgãos de comunicação social. Já o último dos episódios, também bastante elucidativo, foi a forma como José Rodrigues dos Santos transformou um espaço de comentário denominado “A opinião de José Sócrates” numa “entrevista confrontacional”.

Apesar de ter desabafado que “não vinha preparado para isto”, a fazer fé na perspicácia de Marcelo Rebelo de Sousa, “Sócrates esteve muitíssimo bem, nem se irritou” (Expresso, edição de 29/03/2014). De acordo com o semanário, esta alteração de estilo foi abordada num almoço, em separado, com os comentadores da RTP. Nuno Morais Sarmento, perante a insistência de Rodrigues dos Santos em escolher os temas e ter liberdade para fazer todas as perguntas, terá respondido que não fora “convidado para fazer parte da entrevista de José Rodrigues dos Santos, mas para fazer o comentário de Nuno Morais Sarmento”.

A questão torna-se mais complexa se se começar a estabelecer uma padrão de partis pris  em relação a Sócrates, e mais grave se esta tendência resvalar para a duplicidade de critérios, ao evoluir de uma questão de estilo para uma questão de conteúdo. Um exemplo:  a afirmação de José Sócrates de que “…pagar a dívida é uma ideia de criança. As dívidas dos Estados são por definição eternas. As dívidas gerem-se” foi tratada pela comunicação social de forma sensacionalista e pouco pedagógica (como se fosse uma enormidade), para ser “corroborada”, meses depois, sem suscitar alarido, pelo banqueiro superstar António Horta Osório: “Enquanto os privados devem pagar as dívidas ao longo do seu ciclo de vida, as empresas e os Estados, que não têm um ciclo de vida, não precisam de o fazer. Têm é de pagar o serviço de dívida” (Expresso, 25/01/2014). Ou seja, existe um reacção pavloviana e desprovida de racionalidade a opiniões pouco convencionais ou que escapam à ortodoxia do dia. A noção da irracionalidade deste comportamento já teve eco no PSD. Em recente entrevista ao jornal Público, Pedro Santana Lopes afirmou: “Eu não sou daqueles que fustiga o eng. Sócrates a dizer que ele é o culpado por tudo o que se passa em Portugal. Acho essa ideia absolutamente caricata e ridícula. A principal culpa pelo que se passa em Portugal são factores externos. O eng. Sócrates desorientou-se na parte final do mandato, tomou muitas medidas erradas, mas durante anos desenvolveu políticas correctas e tomou muitas boas medidas.” Será impossível entrevistar ou comentar Sócrates de forma incisiva, até porventura contundente, sem perder o rigor, o equilíbrio e a isenção?

Pessoalmente, faço votos para que Rodrigues dos Santos exercite a técnica da “entrevista confrontacional”, onde a “isenção pode perder-se” e o entrevistador assume o “papel de advogado do diabo”, numa próxima entrevista com Pedro Passos Coelho. Seria uma forma de fazer a prova dos factos e estabelecer o contraditório em relação às afirmações do actual primeiro-ministro. Uma tarefa que até ao momento tem sido fundamentalmente desempenhada por protagonistas da blogosfera, onde colectâneas de intervenções de Passos Coelho se encarregam de demonstrar o esplendor da irredimível incoerência (ou será inconsciência?). Talvez por isso, quando uma deputada no Parlamento brutalmente lhe diz que a palavra dele “não vale nada”, a sua única defesa seja o silêncio. O silêncio dos culpados.

 

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