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NO VAGAR DA PENUMBRA

NO VAGAR DA PENUMBRA

MISS ENIGMA E A PRINCESA DO POVO

Setembro 26, 2013

J.J. Faria Santos

Duas longas-metragens, uma acabada de estrear em Portugal, Diana, de Oliver Hirschbiegel com Naomi Watts no papel principal, e outra com a chegada aos cinemas prevista para o início de 2014, Grace of Monaco, protagonizada por Nicole Kidman e realizada por Oliver Dahan, debruçam-se sobre duas das mais carismáticas figuras da realeza europeia.

Grace Kelly, americana de nascimento, com as suas maneiras impecáveis, o porte imaculado, o estilo sofisticado e a beleza clássica construiu uma imagem de distinção e serenidade. Consta que por detrás da placidez contemplativa, aonde alguns viam um certo gelo, crepitava a labareda da paixão. Anthony Lane, num artigo que escreveu para a New Yorker, cita uma biografia de Kelly escrita por Robert Lacey , na qual Skip Hathaway, mulher do realizador Henry Hathaway, atribui à actriz uma fenomenal voracidade sexual (“Grace Kelly fucked everything in sight”). Nos anos cinquenta do século passado, ainda era possível que uma estrela de cinema se apresentasse envolta em mistério e sugestão, sem que as suas opções de vida, desejos ou inclinações pudessem ameaçar o seu brilho. Alec Guiness, que trabalhou com ela em The Swan, chamou-lhe Miss Enigma. Como uma Bela Adormecida, aprumada e virginal, quando um Príncipe a beijava acordava-a para a vida em toda a sua plenitude. Do etéreo para o carnal e  vice-versa. Como uma mulher íntegra, inteira.

Enquanto Grace Kelly deveu grande parte da sua popularidade à forma como abraçou o papel tradicional de figura da realeza (da aristocracia de Hollywood ao círculo dos Grimaldi no Mónaco), Diana tornou-se amada por se aproximar do quotidiano do comum dos mortais, das suas aspirações e frustrações. Pouco depois da sua morte, escreveu Eduardo Prado Coelho: “(…) na morte de Diana está em primeiro lugar em jogo o nosso interminável, desamparado e funesto confronto com a ideia de felicidade: uma rapariga tímida que se torna princesa e irradia felicidade, que depois é infeliz como toda a gente, e que depois está quase a ser feliz, e o chegou a ser no momento imóvel de um beijo espalhado pelos quatro cantos do mundo, até que o destino a sacrifica pela morte para lhe restituir a felicidade divina de um reconhecimento ilimitado” (Público, 7.09.1997). Perseguida pelos paparazzi, protagonista de um outro tempo, mesmo que o desejasse Diana jamais lograria envolver as suas escapadelas num secretismo semelhante ao de Kelly. Não é certo que o pretendesse. A exposição dos sentimentos parecia nela fazer parte de uma necessidade de comungar do ordinário, fora da atmosfera extraordinária da realeza britânica. Em 25 de Dezembro de 1997, a Paris Match  editou o que foi apresentado como a última entrevista de Lady Di. Nela, por entre juras de amor a Dodi, Diana explicitou de forma clara que se sentia mais próxima das pessoas modestas e, por contraste, inútil num “palácio gelado” (“Il est certain que je me sens plus proche des gens modestes que de la haute société. On en apprend beaucoup plus sur soi et la vie en visitant un bidonville qu’en se sentant inutile dans un palais glacé”). 

Entre o gelo dos palácios incapaz de suster as princesas rebeldes, e de preservar sequestrados os sentimentos em nome da preservação das instituições, e a máscara glacial que aproveita as convenções para as perverter na intimidade (e em nome da intimidade), o que sobressai é emergência de uma nova era, com a progressiva humanização dos heróis e das heroínas e a sua submissão a um escrutínio popular, democrático, que não exclui nem a crueldade nem a piedade. Às vezes, simultaneamente.

 

O ESTADISTA (FROM MASSAMÁ TO THE WORLD)

Setembro 19, 2013

J.J. Faria Santos

“Já alguém se lembrou de perguntar aos 900 000 desempregados de que lhes valeu a Constituição até hoje?”, vociferou ele. Meditamos nestas palavras e é impossível não ver nelas a frieza analítica de um Mitterrand, a determinação de uma Thatcher ou a ousadia de um Churchill. Os conservadores institucionalistas que se arrepiem até à medula, pois o executor do ajustamento não abandonará a linha justa. E única.

É certo que ele se comprometeu, antes das eleições, a não “impor sacrifícios aos que mais precisam”. E a “desonerar a classe média e baixa”. E a não “despedir pessoas nem cortar salários”. E por aí fora. A enumeração exaustiva destes faux pas (para não lhe chamar mentiras, inverdades ou incumprimentos) deixar-nos-ia, a todos nós, justamente à beira da exaustão. E qual é o leitmotiv da sua acção? O estado de necessidade, pois claro! O argumento supremo é o célebre “não há dinheiro”. É difícil imaginar um modo mais indigente de justificar uma “política”. Já para não falar do efeito de confusão que gera nos eleitores este género de asserções, ao mesmo tempo que se destaca na comunicação social o número fétiche dos 21 mil milhões de euros, que tanto se refere ao valor dos depósitos da administração central como ao volume de fundos europeus que se anunciam a partir de Janeiro de 2014. Definir prioridades e critérios para a alocação de recursos, com base num projecto político para a nação que compatibilize os constrangimentos orçamentais com a preservação dos adquiridos civilizacionais, é função incompatível com tiradas populistas e decisões voluntaristas.

É sintomática a reacção epidérmica que o estadista de Massamá provoca no seu próprio partido. Ângelo Correia diz que o PSD não se preparou para ser Governo e que Passos Coelho “não tem consistência”. Pacheco Pereira escreveu em Julho, no auge da crise da coligação, que “o primeiro-ministro, que se tivesse um resto de hombridade já há muito se teria demitido, engole tudo para permanecer no poder”. Há pouco mais de uma semana, acusou o Governo de ter rompido “o tecido social como ele nunca tinha sido rompido desde o 25 de Abril, semeando a discórdia e a divisão, sem qualquer resultado adquirido e sustentável”. Manuela Ferreira Leite classifica os cortes nas pensões da CGA como “uma medida arbitrária” que pode causar “danos dramaticamente imorais”. Comentando a pressão do FMI para a redução dos salários no sector privado, interrogou-se: “Há, por acaso, algum estudo que revele que o problema do desemprego se resolve baixando os salários?”. E, caucionando o chumbo do Tribunal Constitucional “nalgumas situações”, lançou a pergunta: “Nós estamos ou não estamos num Estado de Direito?”. (É verdade que, em tempos, Ferreira Leite levantara a questão da suspensão da democracia por seis meses. Parece que se tratou de um exercício de ironia, que não foi compreendido como tal. Como sabemos, Ferreira Leite a ironizar é como Cavaco a fazer humor: uma absoluta impossibilidade…).

“Não há dinheiro. Qual das três palavras não percebeu?” terá dito num Conselho de Ministros Vítor Gaspar a Álvaro Santos Pereira. É verdade que o argumento é inane, mas não deixa de ser algo divertido ver um professor catedrático ser tratado com esta displicência, para não dizer desprezo. Uma exibição de arrogância que permite duvidar da genuinidade de posteriores manifestações de humildade. Neste momento, o IGCP não está sob pressão para emitir dívida porque as necessidades de financiamento do Estado até ao final do ano e para parte de 2014 já estão cobertas. E, reportando-me só a notícias recentes, continua a haver dinheiro para pagar a assessoria do JP Morgan para a privatização dos CTT ou para promover adjuntos a assessores.

Manuela Ferreira Leite diz que não é admissível manter a discussão acerca dos cortes nas pensões “alheada de princípios e valores”. Talvez esteja equivocado, mas palpita-me que o primeiro-ministro é mais sensível ao pragmatismo radical da rainha do telelixo, Teresa Guilherme, que afirmou um dia que “quem tem ética passa fome”. E não será de excluir vê-lo, um dia destes, ornamentado na lapela com a omnipresente bandeira, num púlpito sóbrio, proclamando pausadamente, no seu estilo de arrogante explicador de falinhas mansas, que a troika não é sensível à justiça social, que os mercados reagem mal a medidas que preservam a dignidade da pessoa humana, ou que a moral não é moeda que os nossos credores aceitem.

MELODIAS DE SETEMBRO

Setembro 12, 2013

J.J. Faria Santos

                          "Matinée de septembre" de Paul Émile Chabas

                                       (Courtesy of www.bertc.com)

 

Gilbert Bécaud em C’est en Septembre prefere a abordagem naturalista (as oliveiras sobrecarregadas, as uvas que ganham cor, a areia que arrefece) com pinceladas de reflexão sociológica (o fim da “grande feira das ilusões” com o regresso dos veraneantes às suas ocupações). É em Setembro, canta ele, “quando os veleiros são desvelados e a praia treme à sombra de um Outono esmaecido” que se vive na plenitude. Bécaud evoca um país que  abandona aos estrangeiros, em Maio, para ele mesmo devir estrangeiro ( Et je te laisse aux étrangers /Pour aller faire l´étranger moi-même / Sous d´autres ciels ), regressando em Setembro para uma praia que o reconhece. E para uma oliveira que o acolhe à sua sombra, abençoando o descanso do guerreiro.

 

Neil Diamond pegou no tema e fez uma versão marcadamente romanesca. September Morn   ( ou September Morning ) narra o reencontro de dois amantes. Começa com uma necessidade de contemplação que confirme o reconhecimento (Stay and let me look at you / It’s been so long, I hardly knew you / Standing in the door ). Muitas estações passaram. Percorreram, cada um por si, um longo caminho que os afasta do tempo do encantamento inicial. Mas essa distância não os fez esquecer os momentos que partilharam. Nas manhãs de Setembro, ele dedica-se a rememorar a noite em que dançaram até à alvorada.

 

Também se apela à recordação de uma dança em September dos Earth Wind & Fire. A evocação vai ao ponto de detalhar um dia específico do mês (Do you remember the 21st night of September? ). Aqui, supõe-se, tendo em conta a enérgica fusão de ritmos afro-brasileiros típica da banda, a dança afastar-se-ia da terna celebração do amor para se materializar numa eufórica extroversão da paixão ( Our hearts were ringing / In the key that our souls were singing. / As we danced in the night, / Remember how the stars stole the night away ). Lá mais para o final do tema, percebemos que aqui não houve reencontro porque nunca houve separação. O amor de Setembro perdura em Dezembro ( Now December found the love that we shared in September ).

 

Quando era jovem, canta ele (Sinatra ou Tony Bennett), cortejar as raparigas era um jogo de paciência ( I played me a waiting game ). Se a amada o desdenhava, deixava passar o tempo, enquanto tentava conquistar-lhe a afeição com lágrimas em vez de pérolas ( I plied her with tears in lieu of pearls ). E ela acabava por ceder. Mas é “longo o caminho de Maio a Dezembro” e os “dias encurtam quando se chega a Setembro”. Neste ponto, September Song , da dupla Kurt Weill/Maxwell Anderson, carrega na simbologia. É do envelhecimento que se fala. Já é Outono e não há tempo para jogos de paciência. A escolha está feita. Os escassos anos vintage, os dias preciosos, serão desfrutados com o amor de todas as estações (…these few vintage years I’ll spend with you / These precious years I’ll spend with you ).

NOTAS DE UM PRETÉRITO AGOSTO

Setembro 05, 2013

J.J. Faria Santos

O CD – Terá sido por causa da mistura irresistível de jazz, blues  e soul , da harmonia dos duetos com Hindi Zahra e Emily King, da voz que reúne a expressividade com a sobriedade? No beginning no end, de José James, reinou na minha playlist de Agosto e promete fazer a recepção ao Outono. Ah! E aqueles sublinhados de órgão, mas sobretudo o solo de piano, em Do you feel  definem a expressão superlativo. Será excessivo considerar que há muito tempo que os assuntos do coração não tinham um tão inspirado trovador na melhor tradição da música negra?

 

O LIVRO – O que é que se pode desejar de um livro que nos acompanha nas férias de Verão? Que possa ganhar o duelo com o sol e com o mar, que narre sem particular inovação estilística mas com brilhantismo as intrigas de uma corte, que faça o retrato de uma época e o recheie com incisivos retratos psicológicos dos seus protagonistas? O Livro Negro , de Hilary Mantel, é um sucessor à altura de Wolf Hall, ambos justificando plenamente a atribuição do prémio Booker. Reparem nesta deliciosa apresentação de Jane Seymour, futuro alvo da atenção de Henry VIII: “é uma rapariga recatada com uma palidez de prata, o hábito do silêncio e uma maneira peculiar de olhar para os homens como se representassem uma surpresa desagradável.” (Pág.29). E se pensam que as reflexões da Inglaterra do século XVI estão demasiado distantes das inquietações da Europa do século XXI vejam este extracto: “O melhor é não pôr as pessoas à prova, não as forçar à desesperação. Fazê-las prosperar; tendo o supérfluo, serão generosas. As barrigas cheias criam brandos costumes. A beliscadura da fome, monstros.” (Pág. 53 – Civilização Editora – Tradução de Miguel Freitas da Costa).

 

A EFEMÉRIDE – A revista Time, evocando o 50º aniversário da Marcha em Washington, fez uma edição especial celebrando o discurso de Martin Luther King Jr. e avaliando os progressos e as insuficiências de uma causa. 17 participantes na Marcha recordaram o dia histórico em que, acicatado e/ou inspirado por Mahalia Jackson, a lendária cantora gospel (“Tell ‘em about the dream, Martin.”), King se dirigiu às massas embalado por um sonho, logrando aquilo que Jon Meacham chamou “erguer o seu discurso do banal para o histórico, do mundano para o sagrado”. Nesse tempo, como nota o participante Hank Thomas, a liberdade nos EUA tinha “um asterisco”, para assinalar a exclusão dos negros, e a reivindicação de direitos tinha um preço demasiado elevado. Talvez por isso, Nan Orrock, que também se juntou à Marcha, se tenha confessado “esmagada pela noção de estar na presença da coragem”.

Poucas coisas me provocam mais repulsa que a exibição de atitudes, expressões e tiques racistas. Mesmo que sob a capa do paternalismo ou da bondade compassiva. Mas o que verdadeiramente me escandaliza, é que a defesa da superioridade baseada na cor da pele é a demonstração da mais bruta e rematada irracionalidade. Ou estupidez. Uma e outra imperdoáveis há cinquenta anos e inadmissíveis na actualidade.

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