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NO VAGAR DA PENUMBRA

NO VAGAR DA PENUMBRA

POR FAVOR NÃO ME APERTE O PESCOÇO!

Junho 27, 2013

J.J. Faria Santos

De certa forma, posso afirmar que sou uma espécie de antigourmet – não tenho apetência por comidas sofisticadas ou exóticas, nem sequer tenho o culto da refeição, entendida como o espaço por excelência para o cultivo das amizades ou dos interesses. Um almoço ou um jantar, regra geral, representam apenas o ritual necessário para a ingestão de calorias indispensáveis à sobrevivência. Programas como o Masterchef ou o Hell’s Kitchen  aborrecem-me: demasiada testosterona, demasiada meritocracia, demasiada relevo ao empratamento em detrimento do apelo do sabor, demasiado novo-riquismo gastronómico (como se o maior deleite da fruição de determinado prato residisse na enunciação do seu nome, género “espuma de beterraba em cama de espargos”).

As minhas competências na matéria resumem-se ao básico, ao muito básico. A minha última experiência (sintomaticamente uma sobremesa) foi um doce de colher, que incluía leite condensado, queijo mascarpone e bolachas de chocolate, disposto em taças enfeitadas com fisális. Claro que grande parte do prazer da confecção consistiu na repetida pergunta que persistiu em assomar-me ao cérebro: e se eu desatasse a comer isto tudo às colheres mesmo antes de estar pronto?

É esta celebração jubilosa da gula que eu aprecio nos programas de Nigella Lawson, a voluptuosa dança de recipientes e talheres, a glamourosa  e quase pecaminosa cedência ao prazer da degustação que não se envergonha de recorrer ao básico ousando dar-lhe um toque sublime.

Ora, sucede que recentemente Charles Saatchi, milionário coleccionador de arte e marido de Lawson, agarrou-lhe o pescoço várias vezes durante uma discussão num restaurante em Londres. Nigella saiu do restaurante em lágrimas. Saatchi alegou que tudo não passara de um “arrufo” e que estava apenas a ser enfático. Será prática comum no seio da aristocracia financeira inglesa apertar o pescoço do interlocutor quando se pretende enfatizar algo? O que é certo é que, apesar do desconforto e mesmo choque de alguns observadores da cena, ninguém interveio. Num comentário reproduzido no site  do Guardian , Suzanne Moore questionou-se: “Se um homem tivesse as mãos em volta do pescoço de outro homem durante a refeição, os empregados comportar-se-iam como se isso fosse normal?”.

Moore diz que Saatchi é um figurão que não se preocupa com gentilezas. Sendo Nigella profissionalmente bem-sucedida (com os proventos financeiros inerentes), estará disposta a aturar este troglodita com privilégios? É que ainda por cima, afronta das afrontas, Saatchi odeia a comida dela.

ADICIONAR TEMPO À ETERNIDADE (UM PLEONASMO INGLÊS)

Junho 20, 2013

J.J. Faria Santos

Uma breve consulta ao site www.phrases.org.uk informa-me que a expressão terá sido utilizada pela primeira vez por Shakespeare na peça A Fera Amansada (The Taming of the Shrew ), em 1596, colocando-a numa fala de Biondello (“…bid Bianca farewell  for ever and a day”); quatro anos mais tarde, reutilizou-a noutra peça, Como lhe Aprouver (As You Like It ), numa resposta de Orlando a Rosalinda.

Esta expressão idiomática que pretende enfatizar para além dos limites do racional a noção de perpetuidade tem o charme das proclamações arrebatadas. Sabemos que a ideia do para sempre contém em si a noção de algo eterno, sem balizas, por conseguinte, tornando supérfluo e inútil qualquer anseio de prolongamento. Mas no reino por vezes delirante dos sentimentos, é natural que a mais abrangente das palavras pareça insuficiente e que a dimensão de uma paixão amorosa, ou de um ódio insaciável, exija um outro fuso horário, uma outra galáxia de tempo. No TMP, tempo médio das paixões, uma eternidade pode parecer um dia e um dia uma eternidade

OS PÁSSAROS

Junho 13, 2013

J.J. Faria Santos

                            IMAGEM: "Mulher com Papagaio" de Max Beckmann

                                             (Courtesy of www.bertc.com)

 

O filme começa com a socialite Melanie Daniels, elegante e sorridente,  a entrar na Davidson’s Pet Shop em busca de um mainá e termina com ela ferida, enfaixada e amparada a atravessar aterrorizada um exército de pássaros malignos num cenário apocalíptico. Melanie chega a Bodega Bay com dois “pássaros do amor” (periquitos – love birds) e acaba por ser perseguida e escorraçada por uma espécie de coligação improvável de pássaros do inferno: corvos, gaivotas, pardais, melros. Não apenas ela, claro, mas toda a cidade.

Na sua engenhosa missão de seduzir Mitch Brenner, ela tem de combater não só os efeitos na sua reputação de uma história infame e parcialmente falsa (que envolve um salto despida para uma fonte em Roma), como também o ciúme pouco disfarçado de uma ex-namorada de Mitch e a desconfiança activa de uma mãe mais temente de abandono que possessiva. No auge da histeria provocada pelos ataques, Melanie acaba mesmo por ser apontada como a origem do mal por uma mulher em pânico – a típica situação estereotipada da forasteira que traz a disrupção ao ambiente idílico. Talvez possamos dizer, nesta linha de raciocínio e socorrendo-nos do contraste com a afirmação da ornitóloga de serviço de que os corvos são “residentes permanentes”, que a estadia de Miss Daniels dependia das intermitências do desejo e dos caprichos da reciprocidade.

Alfred Hitchcock realizou, a partir de um conto de Daphne du Maurier, um filme de terror puro, que é aquele que deriva da incompreensão e do inexplicável. Nunca nos é oferecida uma interpretação para o comportamento dos pássaros, apenas acedemos às suas cruas, implacáveis, imprevisíveis e incansáveis arremetidas.  E mais inquietante que os ataques é a quase silenciosa ameaça negra que os precede, e que se vai formando no poleiro dos telhados, em estruturas de metal ou nas imediações das habitações. Na cena final, o triunfo dos pássaros é suportado pelo seu potencial de dissuasão: já não precisam de investir, basta-lhes sugerir o cerco para que o adversário bata em retirada.

Dizem que Hitchcock via neste filme uma forma de nos fazer reflectir acerca das coisas que tomamos como garantidas e fazer-nos duvidar da nossa auto-satisfação. Por outro lado, até poderíamos ver nesta película uma premonitória parábola ecológica – a natureza agredida em revolta violenta. Mas como sabemos bem quais os territórios que Hitchcock gostava de desbravar, percebemos que este é mais um ensaio sobre o medo que não poupa o mais desejavelmente inexpugnável dos redutos: a habitação. Os pássaros entram pelas janelas, pelas portas, pelo telhado ou pela chaminé, até transformarem um lar familiar numa casa devoluta e os seus residentes em autênticos refugiados ou sem-abrigo.

 

 

PÓS-STRESS

Junho 06, 2013

J.J. Faria Santos

                                            Imagem: Freefoto.com

 

É um intervalo apenas, sei-o bem, mas este interregno permite uma outra respiração, uma outra ponderação de prioridades e sobretudo a definição de um patamar de intransigência: o ponto a partir do qual a palavra vida ameaça perder o seu significado.

Em plena batalha pelo cumprimento de prazos irrenunciáveis, ao fim do dia, ajustava os auscultadores aos ouvidos e deixava a música fluir. Quase sempre (heresia!) trocava a serenidade do virtuosismo de Glenn Gould (Variações Goldberg) ou de António Pinho Vargas (Tom Waits, June, As mãos), pelos trechos mais acelerados de Emeli Sandé (My Kind of Love, Heaven) ou Jessie Ware (Wildest Moments, Sweet Talk). A saturação da cavalgada laboral exigia a explosão do ritmo. Era como se o andamento da vida quotidiana exigisse a permanência de um presto vivace, bloqueando qualquer veleidade de andante sostenuto  ou adagio apassionato.

“O nossos estilos de vida parecem irremediavelmente contaminados por uma pressão que não dominamos; não há tempo a perder; queremos alcançar as metas o mais rapidamente que formos capazes; os processos desgastam-nos, as perguntas atrasam-nos, os sentimentos são um puro desperdício: dizem-nos que temos de valorizar resultados, apenas resultados”, escreveu José Tolentino Mendonça (ExpressoRevista – 25/05/2013). O que me fez rememorar um texto de Antonin Artaud, genericamente intitulado Os sentimentos atrasam, onde se pode ler: “Os sentimentos atrasam, as paixões atrasam, as instituições atrasam, está tudo a mais, nesse demais sempre a pesar sobre a existência, ela própria uma ideia a mais (…) não há profundidade nas coisas, não há além, nem mais voragem do que a que formos capazes de lá pôr ” (Hiena Editora).

Seremos capazes de criar um movimento de resistência? E será a resistência suficiente ou a dimensão do retrocesso exigirá uma espécie de reconquista? A própria crise económico-financeira, a falência do pleno emprego e a reformulação dos tempos e dos modos do trabalho contribuirão para a construção de um novo paradigma que regule a nossa existência?  “Passamos pelas coisas sem as habitar, falamos com os outros sem os ouvir (…) Na verdade, a velocidade com que vivemos impede-nos de viver”, diagnosticou Tolentino Mendonça na sua notabilíssima (só o superlativo lhe faz justiça) crónica intitulada A arte da lentidão.

Poderemos ser felizes vivendo como se corrêssemos em perpétuos sprints extenuantes provas de velocidade ou atingiremos a redenção da maratona? Ou, quiçá, teremos desistido de acreditar na ventura?  “O mundo é um sítio onde há infinitamente mais gente infeliz que feliz. Eu sou feliz.(…) O amor, a amizade e a arte é o que ainda me faz estar vivo”, afirmou Paulo Nozolino em entrevista ao Público (12/05/2013). Referindo-se a um seu trabalho acerca do mundo árabe, de título Penumbra, Nozolino afirmou que “’penumbra’ é um lugar escuro e significa viver uma existência sem glória”. Estaremos reduzidos à escolha entre o frenesim das luzes da ribalta e a inglória da penumbra?

O vagar não tem de ser sinónimo de improdutividade, estagnação ou indolência; pode ser  um exercício de ponderação, fruição ou revitalização. A penumbra não tem de ser sinónimo de renúncia, irrelevância ou indigência; pode ser um posto de recolhimento, observação e reflexão. No vagar da penumbra tanto se pode operar um encontro de vontades como se manifestar uma vontade de encontros.

 

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