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NO VAGAR DA PENUMBRA

NO VAGAR DA PENUMBRA

O POBRE (DEPOIMENTO ORAL DE UM RICO RELUTANTE)

Agosto 28, 2011

J.J. Faria Santos

Não sei se está a ver, mas a culpa é daquelas balelas da igualdade de oportunidades e do combate à exclusão, quando o que verdadeiramente conta é a selecção natural. Os mais fortes, os mais bem preparados, os líderes e os visionários triunfam, acumulam capital e bens, poder e influência. É estulto pensar que tudo se resume ao dinheiro; enfim, talvez isso suceda num caso ou noutro, em novos-ricos sem classe nem estatuto. Para as pessoas bem, e de bem, o dinheiro é um activo cujo nome ninguém ousa pronunciar. Rico? Ouça! Rico é uma convenção da linguagem ou, se quiser, uma relíquia de ideologias desacreditadas, algo com ressonâncias terceiro-mundistas ou sul-americanas. Aquilo que o comum dos mortais chama de rico é o indivíduo que com os postos de trabalho que cria e o dinamismo que infunde na economia, na prática, mantém acima da linha de pobreza centenas ou milhares de cidadãos.  Está a ver a responsabilidade social que tudo isto representa? E, ainda por cima, tem de suportar um Estado ineficiente, hiper-regulador e que actua como um saqueador tributário, sindicatos anacrónicos com saudades do PREC, políticos que usam a demagogia como combustível para conquistar o poder, e uma imprensa a abarrotar de esquerdistas nostálgicos, frustrados pela falência das doutrinas que empinaram na universidade.  Claro que a pobreza é uma maçada! Começa por ser uma agressão estética (roupas andrajosas, higiene deficiente, desleixo geral), que se pode transformar num episódio violento. Sabe, jamais podemos prever como as pessoas reagem às suas frustrações, ainda para mais se ouvem todos os dias nas televisões alusões ao direito à indignação. Sim, porque os deveres nunca são mencionados! E, quase sempre, associada a estes casos, está a miséria moral: o alcoolismo, a violência familiar, a promiscuidade, a preguiça e por aí fora. Não tenha dúvidas, a pobreza não se erradica porque a perfeição não está num qualquer contrato social, entretanto tornado obsoleto pela globalização. Falo em perfeição, porque a pobreza não é mais que uma falha de carácter, uma indisciplina dos sentidos, uma lamentável incapacidade de sustentar a resiliência perante a adversidade e de transformar esta numa oportunidade. Olhe, quer que lhe diga mais? Acabo de me lembrar de uma frase de um romance da Agustina que resume o sentimento de pessoas como nós perante o flagelo da pobreza. Com a epidemia do politicamento correcto que grassa por aí, isto vai soar a provocação, mas olhe, seja o que Deus quiser! Seria cobardia ocultar uma convicção em nome da discrição! A frase reza assim: "Lourença pertencia a uma casta esmoler, gente de grandes recursos para aliviar os precisados, com a condição de eles se manterem dentro das virtudes próprias dos vencidos." É o máximo, não é? E certeira! As grandes frases são intemporais. Esta é de 1961. Hoje em dia, pode ser interpretada como um apelo à união e à harmonia num mundo em convulsão. Ouça, nas actuais condições do país, é um imprescindível requisito patriótico!

O TALENTOSO MR.WOON

Agosto 25, 2011

J.J. Faria Santos

"I've acquired a taste for silence", canta ele, projectando a voz sobre uma batida electro-soul, enquanto que, como uma impenitente criatura da noite, saboreia tudo o que a atmosfera nocturna lhe proporciona antes que o amanhecer reavive a ira.  "Night Air" é a faixa de abertura de "Mirrorwriting", auspiciosa estreia do músico Jamie Woon. "Lady Luck" e "Shoulda" metem no bolso qualquer pretendente a mago do rhythm and blues, e "Gravity" triunfa na categoria de balada etérea onde leveza não significa irrelevância. Não deve surpreender que quem discorre com sabedoria  acerca das virtudes do silêncio não silencie o virtuosismo com que o estilhaça.

ANATOMIA DA GREI

Agosto 23, 2011

J.J. Faria Santos

No quarto habitado pela luminosidade de uma tarde de Verão, e de cuja janela de sétimo piso se pode alcançar uma vista panorâmica da cidade, quatro pacientes (haverá palavra mais justa, mais adequada, para definir um estado que une o padecimento à resignação?) desfiam histórias para passar o tempo. Confinada ao leito, maleita diagnosticada mas terapêutica sujeita a um compasso de espera, Magda compartilha com as parceiras de quarto o facto do seu ex-genro ter trocado a filha por uma brasileira que conheceu na internet. A sua incompreensão deriva da condição de namoro à distância, que persiste. Como subsiste um sentimento em relação ao qual a proximidade, o toque, a simples presença no mesmo espaço físico está ausente? Como pode o virtual sustentar um sentimento real? Assim pensa, no intervalo em que esquece as dores causadas pelas consequências da sua "osteoporose em último grau". Celeste, afogada na demência, passou a noite inteiro a balbuciar palavras e frases sem nexo, reproduzindo com as mãos e o lençol da cama gestos da sua profissão: modista. Uma enfermeira entra no quarto, cabelo louro apanhado a descobrir um rosto de belos traços, e pergunta-lhe qualquer coisa, antes de perceber que é a "senhora do Alzheimer". Sai do quarto com a mesma determinação com que entrou, e é fácil efabular e imaginá-la, daí a pouco, a sorrir para um médico engatatão e a condescender em furtivas manifestações de afecto. Palmira foi a última a chegar, parece dormir com o peso dos seus noventa e quatro anos, e acaba de ser alvo de uma desmesurada manifestação de carinho por parte da funcionária do lar que a alberga e que a trata por avó. O que parece desmentir a ideia comum dos lares serem depósitos de idosos, onde o tratamento asséptico e cortês nem sempre afasta o peso da despersonalização que a palavra instituição parece conter. Maria vai ser a primeira a sair, com o pé enfaixado, ansiosa pelos conselhos para o pós-operatório e pela posse do boletim de alta. Recusa a oferta do chá, cansa-se de esperar pela carta de alforria e, apoiada no andarilho, aventura-se pelo corredor em busca de quem cumpra a promessa de poder ir para casa. Regressa ao quarto, mais sossegada, a tempo de ouvir Magda contar um episódio que testemunhara nas Urgências: um casal, de partida para férias, que sofrera um acidente de viação e que, agora, na maca, colar imobilizador, um e outro moviam-se irrequietamente, perguntando pela carteira e restantes pertences. O homem acabara mesmo por tombar da maca, agravando o fluxo de sangue que fluía de um golpe no rosto. Maria despediu-se com um desejo de melhoras para as suas companheiras involuntárias, e abandonou o hospital, observando o médico e a enfermeira que, no exterior, fumavam desalmadamente. Era um gesto que de certa maneira os humanizava. Temos tendência a encara-los como deuses, capazes de nos curarem o corpo e a alma. A humanidade que nos assusta, porque associada à possibilidade do erro, é a mesma que nos consola, porque os coloca como nossos semelhantes, mas com o poder de um conhecimento vital.

HOMEM RICO, HOMEM POBRE

Agosto 17, 2011

J.J. Faria Santos

Warren E. Buffett fez publicar no New York Times um muito citado artigo onde denuncia o tratamento de favor de que têm beneficiado os "mega-ricos". Os números são eloquentes: em 1992, o rendimento tributável dos quatrocentos mais ricos nos EUA ascendia a 16,9 biliões de dólares e pagavam impostos federais que representavam 29,2% desse valor; em 2008, os valores comparáveis eram, respectivamnte, 90,9 biliões e 21,5%. Buffett cita o seu próprio caso como exemplo de iniquidade fiscal: no ano transacto pagou uma taxa de 17,4% sobre o seu rendimento tributável, valor inferior ao de cerca de vinte funcionários do seu escritório, que pagaram em média 36%. O artigo termina advogando a elevação da carga fiscal sobre os mais ricos, depois de o ter iniciado criticando os líderes políticos por falarem de partilha de sacrifícios e pouparem os afluentes. De passagem, contesta dois poderosos axiomas do pensamento económico dominante: "As pessoas investem para ganhar dinheiro, e os impostos potenciais nunca as assustaram. E para aqueles que argumentam que taxas mais elevadas prejudicam a criação de emprego, faço notar que 40 milhões de empregos líquidos foram acrescentados entre 1980 e 2000. Sabemos o que se passou desde essa altura: taxas de imposto mais baixas e mais baixa criação de emprego." Assim se torpedeia o consenso liberal. Algo que seria impensável em Portugal, onde a nata empresarial segue o catecismo ortodoxo da alta finança.  As suas iniciativas cívicas restringem-se às ocasionais preocupações sociais, de que é exemplo o Plano de Emergência Social criado pela Jerónimo Martins para os seus trabalhadores, visando aliviar o estrangulamento provocado pelas dívidas e as carências alimentares. Este plano mereceu a interpelação de Daniel Oliveira. No Expresso de sábado passado, podia ler-se: "Na sua acção promocional, o piedoso Alexandre Soares dos Santos não se perguntou porque há tantos trabalhadores das suas empresas, com emprego e salário, a viver na penúria. Porque o salário médio é de 540 euros? Claro que não! Isso, com sabedoria, chega e sobra."

LICENÇA PARA MATAR EM ABBOTTABAD

Agosto 11, 2011

J.J. Faria Santos

A New Yorker publicou um extraordinário relato de Nicholas Schmidle acerca da operação que conduziu à eliminação física de Osama Bin Laden (Getting Bin Laden). Acompanhamos os acontecimentos desde o momento em que 23 Navy Seals, um tradutor e um cão (chamado Cairo) embarcaram em dois helicópteros (modificados para ocultar o calor, o ruído e o movimento), até ao momento em que, após provocarem a destruição de um Black Hawk que se avariara, abandonaram Abbotabad perante o choque e a surpresa de quem assistia e as incessantes imprecações de Amal, a quinta mulher de Bin Laden. A narrativa lê-se como um livro de aventuras, com o encadeamento e o ritmo de um best-seller, com cirúrgicas digressões que enquadram as peripécias. Não faltam sequer os episódios burlescos para quebrar a tensão, como por exemplo a atribulada chegada ao solo de um helicóptero, por entre vacas, galinhas e coelhos em debandada. Entre a aterragem dos helicópteros e os dois tiros fatais que derrubaram o desarmado símbolo do terror decorreram apenas dezoito minutos. O pormenor de duas das suas mulheres se terem colocado à frente dele, funcionando como escudo, diz muito, quer sobre uma ideologia que glorifica o martírio, quer sobre uma sociedade falocêntrica que desvaloriza a condição feminina. Apoiado nas declarações de um operacional, o autor sustenta que nunca se pusera a hipótese de capturar Bin Laden, ou seja, desde o início se tratara de uma missão com licença para matar. O que talvez explique as singelas palavras proferidas a quente por Obama: ("We got him"), algo que mais depressa imaginaríamos na boca do cowboy George W. Bush. Ainda assim, compreende-se o desabafo. Como Ben Rhodes, vice-conselheiro nacional de segurança, fez notar, os operacionais apostaram as suas vidas e Obama a sua Presidência.

FASHIONISTA ACIDENTAL

Agosto 06, 2011

J.J. Faria Santos

Quando percorro sucessivamente canais de televisão, como forma de repouso mental, acabo sempre por me deter na Fashion TV. Há algo de tranquilizante nos cenários mais ou menos estereotipados, nas poses repetitivas, na retumbante inexpressividade do rosto dos corpos que desfilam. Já para não falar da música, que oscila entre a dance music para as massas, a pop do dia e o variado easy listening. Uma vez por outra, uma manequim quebra o statu quo, afivelando um sorriso e exibindo o seu corpo (através de gestos, inflexões, requebros) tanto quanto a peça que enverga. Na moda masculina, o nível de rigidez é ainda mais elevado, com os modelos a desfilarem com uma atitude que eu definiria entre o robótico e o desengonçado. Aparentemente, na nova geração não existem sucessoras à altura da fabulosa Naomi Campbell (inimitável no pisar da passerelle, carismática e intratável), da esfíngica Carla Bruni e da camaleónica Kate Moss (com uma amplitude de registos notável, capaz de interpretar com igual eficácia a descontração do street wear e a sofisticação da alta-costura). A palavra glamour, que associamos frequentemente ao mundo da moda, é uma corruptela da palavra grammar. Evidentemente que a moda tem a sua gramática, um conjunto de regras que regem o seu discurso, e, uma vez por outra, surge um ser visionário que reinventa a linguagem e a resgata da frivolidade exclusivista. E é sempre alguém que subscreveria, sem hesitação, as palavras de Coco Chanel: "A moda não é só uma questão de roupa. A moda anda no ar, nasce com o vento. Podemos intuí-la. Está no céu e na estrada."

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